Uma paixão tardia
Eles formam um casal em circunstâncias que não escolheram. Ele, até a terceira idade, jamais havia sentido a presença de fêmea. Ela, ainda na infância, fora perseguida para assumir o lugar dessa esperada presença. Essas perseguições, que aos olhos ignorantes pareciam assédios pedófilos, para ela não passavam de exercícios brincalhões. Para ele, pelo contrário, persegui-la era uma ordem, uma urgência para satisfazer necessidades, antes que lhe fugissem as adormecidas forças. Por isso ele, na angústia e na ameaça do fenecimento, impaciente esperou quase dois longos anos, um tempo maior e mais duro que os sete de Jacó, quando este aguardava e desejava só e somente Raquel. Ainda assim, para a esperada graça da futura fêmea, o encanecido senhor sempre achou que valera a pena. Apenas lamentava que para tão longo amor fosse tão curta a vida.
Duque e Duquesa foram assim batizados em razão da ironia que busca elevação entre os nobres. Mas se fossem chamados de Vulcão e Lava muito bem estariam chamados. Isto porque na força declinante dos seus 14 anos, como um vulcão Duque entrou numa adolescência tardia, assim como, com o devido perdão da impropriedade, se dizia de Goethe quando se apaixonou aos 74 anos. Ao lhe ser apresentada a futura Duquesa, um objeto estranho de 15 dias de vida, ele apenas notou que a nobre ladrava muito pela madrugada, o que constituía uma irritante perturbação do sono. No entanto, por essa estranha propriedade que possui o tempo para os cães, pouco mais de seis meses depois, já Duquesa entrava no viço da puberdade. E começou, a partir daí, a transformação do velho nobre, que foi aos poucos atingindo uma natureza de vulcão, desperto. Catorze anos acumulados de falta, de sentir cheiro de cio ao longe, vindo além dos muros dos quintais e dos jardins, anos de raiva, de mau humor, de rosnar terrível para vacinas que apenas no nome se assemelhavam a vaginas, então todo esse mundo, um vale que em vez de lágrimas era de urina pelos cantos, então todo o mundo floriu, dir-se-ia melhor, saltou, pulou, deu cabriolas na figura da senhorita Duquesa.
Ela não era melhor nem pior que qualquer cadela pronta para o montar e para o cruzamento. Duquesa era uma cadela rigorosamente negra, uma promessa de prazer a ser cumprida num altar de beleza e orgia. Baudelaire e Dorotéia nos perdoem, se ao caminhar, também ela, Duquesa, balançava com indolência as ancas largas. E se não vestia seda colante, de tom róseo, para mais contrastar vivamente com as trevas de sua pele, e se não lhe saltavam os seios firmes da bela Dorotéia, e se não, ainda, possuía o peso da enorme cabeleira quase azul a vergar-lhe para trás a cabeça delicada, em compensação Duquesa possuía um cheiro que era já em si a própria saia flutuante a se erguer na brisa. E para que inútil saia a se erguer, se Duquesa era o próprio pecado exposto, inchado, sangrando? Linda, feições finas, carinha em funil, ela descendia da linha real de um negro cão fila, que se acasalara com uma gentil vira-lata. Apesar do ascendente paterno, Duquesa era dócil, afetuosa, suplicante de carinho para pés e mãos humanas. Para o nobre Duque, não. Atraído pelo perfume da pétala jovem, o ex-velho Duque, com ares de Vesúvio renovado, somente queria Duquesa montar. Ela, no entanto, na pureza do seu frescor menstrual, apenas interpretava aquelas cachorradas como um convite para brincadeiras. E também pulava, para ver se alcançava o pescoço enrugado do frustrado reprodutor.
Duque, dir-se-ia dele que o sangue vindo de Duquesa corria direto para o seu coração. Na altura dos seus 14 anos, ou, se me expresso mal, aos 72 de uma vida humana, fosse pela súbita agitação de sangue em suas veias, fosse pelos exercícios diários de salta e corre, o certo é que ele mergulhou numa estranha transformação. Assim como se transforma o amador na coisa amada por virtude do muito imaginar, Duque, nos limites do sexo e da espécie, passou a imitar Duquesa, a dar saltinhos pesados e desajeitados, a ficar sobre duas patas para receber o dono, a latir em uníssono com ela, ele, grave, ela, aguda. Era digno de se ver o velho casmurro, resmungão, que mal latia e costumava se deitar para cochilar pelos cantos, agora ágil a seguir Duquesa na hostilidade aos gatos e estranhos. Como se dissesse e se exibisse aos donos e ao mundo: “Atenção, eu ainda sou o Duque”.
Duquesa, apesar de rejeitar sistematicamente o assédio do ex-velho, estava fadada a ser vencida. Se não por ele, pelo menos em razão da própria natureza, que lhe ordenava a negaça para ao fim atingir o grande prêmio. Ainda que não possuísse as formas de mulher, queremos dizer, ainda que não tivesse atingido as formas de fêmea madura para um saudável cruzamento com um macho apto para lhe gerar prenhez e robustos filhotes, estava escrito que a infante Duquesa seria vencida. Por isso, para que não cumprisse o natural destino, por duas vezes os seus donos a vacinaram. Por mais um ano, equivalente a sete anos, como um dia se escreveu, “sete anos de pastor Jacó servia Labão”, por mais sete, portanto de contabilidade canina, Duque foi artificialmente contido em seus carinhos desajeitados a Duquesa. Então eis que um dia ela não mais pôde ser vacinada, e nesse último abril voltou o calendário da juventude para o velho Duque. Os assédios, os torneios, as tentativas de montá-la recomeçaram. E foi um engraçado montar, digno de ser anotado. Porque, enquanto não se punha sobre ela, o fogoso velho Duque cavalgava, à semelhança de cavalinhos de carrossel. Subia e descia em desgraciosos saltos em torno da Duquesa, que se voltava repetidas vezes contra ele, encarando-o, para não sofrer assalto pela retaguarda.
Na primeira semana, as investidas e súplicas do encanecido nobre foram inúteis. Nesse intervalo de tempo, equivalente a uns nossos dois meses, a esquiva Duquesa agiu conforme a sua personalidade e comportamento da espécie. Instigava-o, atiçava-o, para assim melhor feri-lo. As artes da corte e da conquista dos humanos, palavrosas e delicadas, em Duque e Duquesa foram despidas das sedas, lenços e etiquetas. As chamadas ligações perigosas, no chão do quintal, foram substituídas por um bailado. Ela apresentava o flanco, ele contente pulava-lhe em cima, para, engano… Ela se voltava e erguendo a suave cabecinha enfrentava-o. Para quê? Quem já viu cruzamento de indivíduos que se desafiam? Por isso o ex-velho Duque fazia-lhe a volta, e ela, num tempo ínfimo, que muito deve durar para os cães, deixava-se sub-repticiamente roçar. Para quê? Para de um salto ofertar-lhe, em vez de um fruto deiscente, um olhar duro como pedra.
Ele novamente fazia-lhe a volta. O jogo e o movimento do jogo se repetiam. Aí por volta da trigésima tentativa, o velho nobre descia as armas, recolhia à bainha a murcha lâmina. Descia e desapontado e cabisbaixo retirava-se. Para quê? Quem mandou parar? A fogosa senhorita corria-lhe atrás, oferecia-se a seu faro, a seus olhos, a seu corpo, tocando-o. Oferecia-se e passava adiante. Então o velho duque sentia renovar a esperança. Pulava-lhe atrás, alcançava-a, punha-se sobre duas patas para o bom e velho cavalgar. Isto era um sonho. Mas isto era o mesmo que, com fome, passar a língua sobre uma iguaria impressa em uma página. Sabor de papel. Ou dizendo de outra maneira, o sonho de montar Duquesa era o mesmo que tentar a posse da beleza de uma bolha de sabão engolindo-a. Beleza de gosto de sabão. Por isso o Duque subia, ficava ereto, animal bípede, para quê? Para nada.
Haveria então mais sete anos? Dos olhos do Duque pareciam correr lágrimas. “Por que és tão cruel, arisca duquesa? Acaso te chamas Ulrike von Levitzow? Somente porque tens um peito não penses jamais que aos cães foi dada a graça de um espírito mais alto”. Então a princesa, dizendo melhor, a duquesa deitava-se, não por cansaço, mas para melhor acerar a ponta da flecha. Dir-se-ia que senhora dos seus encantos, ela se mostrava à gula dos fracos e pobres nobres de toda espécie. As sereias da Odisseia jamais alcançaram o feitiço da fêmea no cio, nunca. Ela, a senhorita Duquesa, cegava, encandeava, obcecava o debilitado senhor Duque. Por essa torta relação que possuem os mamíferos, quando associam o prazer da reprodução ao gosto do alimento na língua, do nobre senhor descia mais nobre saliva. E lhe ocorria dizer: “Levanta, ó duquesa, sem constrangimento tuas pernas para o céu. Levanta tuas pernas que eu levantarei todos, todos os meus braços”. Incauto, auscultava-a, inspecionava-a, ia à sua cauda para melhor cheirá-la, que é uma forma de ampliar a vista nos cães. Para quê? A torturadora Duquesa achava que isto era gesto para ser correspondido, à sua maneira: punha-se em pé e também cheirava o fundo do senhor Duque. O velho nobre, com o rabo grosso, rosnava um palavrão.
Ao fim da primeira semana do terceiro cio da duquesa, ela se foi tornando mais e mais uma fêmea escandalosa. Deitava-se no quintal e mandava raios mais fulminantes que os elétricos, mais que telepáticos, porque raios de sedução. A senhorita duquesa mandava mensagens que feriam a retina e adentravam corpo e alma do senhor Duque. De frente para ele, abria as pernas e expunha clamorosa, despudorada, sádica, a vulva. Dissimulada, dava-se ares de alheia, porque se lambia enquanto fazia arder a natureza em torno. O miserável velho nobre, de olhos grelados, seria o que ela quisesse que ele fosse: gato, sapo, mouro, mauro, escravo. Automatizado, teleguiado, ele saía do seu canto. Então a duquesa, muito arguta para o vigor dos seus dois anos, achava por bem tomar uma sesta na tarde, tão cansada desejava parecer estar. “Dormia”, pois o seu dormir era de um novo sono. Ficava de ventre para o ar, com as patas abertas, em relax de espera. Então o Duque, pobre infeliz, pobre e infeliz, tão velho e sabido, achava que chegara a sua vez. Erguia-se rijo e partia para o encontro e encanto da bela adormecida. Partia, mas não era um bom partir, pois quem parte para a quimera nunca chega a bom termo. Eras logrado, desvanecido nobre. A Duquesa não estava para amores e afetos. O que julgavas sono era astúcia, ou instinto de sedução, ou ainda requinte de armadilha da graça, que faz derrubar gerações de machos e bobos duques. Isto o Duque vinha a sentir, porque ao cheirar o sexo da Duquesa recebia uma imediata resposta, no salto da senhorita sobre o seu pescoço. Então ele, bruto e tonto, fazia-lhe a volta. Para nada, porque a duquesa então protegia o fruto, pondo o corpo de lado. A esta altura, o senhor Duque havendo liberado a sua arma e tormenta, não via mais como voltar com ela seca e enxuta à bainha. E se punha a fornicar-se. Queremos dizer, punha-se com movimentos de fornicador, mas somente atingia o próprio ventre, e em lugar de matar, suicida, com a própria arma se feria. Alheia, a Duquesa achava que tal sofrimento não era da sua conta.
Tudo um dia tem um fim. Na segunda semana do cio da Duquesa, é maio, chega a estação que não se nega nem aos desditosos duques do nordeste brasileiro. Agora parece que a duquesa amolece as ancas e o coração. O seu andar, a sua andadura, confirma as santas e sábias palavras de que o fruto da árvore era bom, e formoso aos olhos, e de aspecto agradável. Isto ela o sabia por necessidade, por gênese e pelo gênese. Quanto à experiência… a mão do homem interveio para conter mais uma vez a felicidade do instinto. Os donos de Duque e Duquesa, insensíveis aos reclamos dos 14 anos áridos do nobre, puseram grades e cadeado na sua paixão. Nem sequer consideraram que sem a Duquesa ele já estaria morto, ou demente, não desta demência que o transtorna, mas de uma outra. Os donos preferiram antes evitar os inconvenientes, um, dois, três, cinco, seis filhotes, de uma gravidez da Duquesa. E por isso agarraram o senhor Duque e o acorrentaram ao pé de um portão sempre fechado.
Por isso a Duquesa encosta as ancas no portão todas as tardes. Ele agita o rabo, fareja-a no seio da flor, mas sofre, e late, porque os ferros do portão não se abrem para o recebimento pleno da Duquesa. Late, irrita-se, discursa, e a ouvidos atentos seus latidos parecem dizer: “Como poderia dar-me o mínimo conforto este fluxo e refluxo, este ir e vir?… À prova me puseram, deram-me Pandora, de bens tão ricos, mais ricos ainda de perigos. Impeliram-me para a boca dadivosa, separaram-me dela, e assim me aniquilam”. Assim parecem pelos olhos, pela agitar do rabo, pelo drama da sua paixão dos últimos anos. Mas o senhor Duque é um cão e semelhante altura da Elegia em Marienbad não pode alcançar. Por isso nessas noites de frio e chuva ele se bate, agita as correntes, enrouquece, late madrugada adentro. Uiva, e não sabe que seu uivo é um acalanto, porque a Duquesa dorme o sono das inocentes.