Coisas e loisas da literatura
Vejo a literatura não apenas como expressão artística, no sentido ‘clássico’ do termo, que isso já é uma outra praia: a do reino da criação, com os seus motivos, engenho e arte. Vejo-a no sentido mais global: a literatura é um mundo em que cabe um pouco do todo que no mesmo mundo existe. Vejo o ensaio enquanto livre exercício de leitura interativa, crítica e buliçosa, mas nunca pela repressão ao trabalho do escritor.
Se a leitura da ficção pernambucana me apetece, então, leio os livros, faço anotações e escrevo sobre eles. Assim fiz e faço algumas vezes para agrado dos que gostam, desgosto dos que não, indiferença dos demais. Assim resolvi, de repente, nos últimos dias, ler dois escritores e uma escritora, pernambucanos viventes em São Paulo, no exercício do pleno direito de cutucar as musas com suas teclas fincadas no conto urbano-existencial, olhos e ouvidos atentos à existência humana crivada de percalços e esperanças, amor e ódio, tédio e euforia.
Eis a minha escolha: Mercadorias e futuro, de José Paes de Lira – Lirinha/Lirovsky. São Paulo: Ateliê, 2008, Col. LêProsa, vol. 7; Rasif – mar que arrebenta, de Marcelino Freire. Rio/São Paulo: Record, 2008; A mulher e o cavalo e outros contos, de Adrienne Myrtes. São Paulo: Alaúde/eraOdito editOra, 2006, Col. Bactéria, vol. 3.
01. Mercadorias do Futuro, de Lirinha.
Lirovsky atua como se fosse um aprendiz de feiticeiro, em profissão de fé, missionário encarregado de vender uma mercadoria: a tábua sagrada de leis de Tereza Purpurina. Transformada em livro, passada de profeta em profeta até o destino final: a humanidade. O texto que segue tenta uma ‘decifração’ dos contos-paródias-de-profecia, de José Paes de Lira.
Lendo a Apresentação do ‘medium’ Lirovsky, já se vê que por aí começa (e se antecipa o fim de) todo o enredo. Sem esta apresentação, nenhum estranho ao ninho da parábola mística poetizada dos ‘visionários adivinhos profetas’ entenderá as três (que são uma) histórias de Lirovsky em sua ‘perseguição aos símbolos proféticos contemporâneos’. Sombras de bruxos jogadores perseguem este aprendiz de feiticeiro. Cumprem missão encomendada por Tereza Purpurina, mestra encantada e fundadora da Academia de Estudos Espirituais e Comunicação Divina do Sagrado Coração da Aposta.
Em primeiro plano vêm os ‘jogadores’: João Pedra Maior, o ‘Tangerino de Almas da Cidade de Eutrópia’ e Benedito Heráclito, profeta armado em férias de gozo poético. Cada um deles é anunciado por mensageiros cuja função missionária é conduzir o iniciado Lirovsky pelas cavernas e encruzilhadas, para que, afinal, este receba sua sagração no papel de ‘vendedor’ da carga de profecias, isto é, ‘Mercadorias’. Lirovsky é incumbido de dar corpo ao livro Mercadorias e futuro, e de vendê-lo. Está escrito! Cumpra-se! Na ‘fé em Tereza Purpurina’. Lirovsky ‘aceita’, está vendendo o produto, mas sem abrir mão do direito à galhofa, típica dos camelôs de remédios e milagres.
02. Rasif – mar que arrebenta, de Marcelino Freire.
Rochedo, trilha de rochas por cima das quais o mar arrebenta: ondas sobre pedras como lâminas de um afiado punhal cortante, que desnuda o samba (a conversa grave ou aguda no dia-a-dia) do crioulo-galego-marrom-pardo doido, digo endoidecido ante a violenta trágica da maré das megalópoles brasileiras. Correndo contra o destino, o desemprego, a fome, o suicídio, enfim, a morte. Endoidecido inocente pelas tramóias do poder, do patrão, da sociedade, dos negócios, da crueldade da vida. Desejando entender o porquê do anonimato, da humilhação, o padecimento na angústia e na desolação.
Daí esse arrebatamento, tal qual o mar, que arrebenta suas ondas contra os arrecifes e invade calçadas e casas de Olinda e Recife, Rio de Janeiro, Los Angeles, espalhando a perplexidade e o horror. Assim andam e se comportam e falam e berram e apelam os manos e manas, personas de Marcelino Freire, fazendo perguntas, interpondo rupturas na lógica dos literatos, na canonização de gêneros e estilos, sublimidades, preciosidades: ‘Elas que se danem!’ Nós, não.
Leco e outras tantas figuras, em miséria existencial ou socioeconômica, cuspindo caras de anjos de vizinhas, xingando as próprias mães e impróprias agruras; curtindo onomatopéias, interjeições, ‘gritos e sussurros’, ‘suspiros poéticos e saudades’, ‘impropérios que a opressão impõe’, loucura lúcida e lucidez delirante. Oralidade plena – construção, reconstrução do discurso da rua, do beco, do cortiço, do palco à Plínio Marcos, do camarim, do papo de cozinha, da roda bêbada de choro e riso, do salão de cabeleireiro, da lavanderia, do operário, da puta, do traveco e do beato. Oralidade rindo do sério discurso narrativo que põe o verbo no mais-que-perfeito o tempo todo como se “fora” natural da narração real, verossímil. Oralidade e fluência com o verbo no tempo presente, porque é na vida sangrada de hoje e no pensamento poético fragmentado de que hoje se arrastam, para o sofrimento e o gozo, são as personagens de Marcelino Freire. Discurso de pessoas mortais, semelhantes a toda e qualquer pessoa do mundo, a cada um de nós. São estas as criaturas que alimentam o coco ritmado em narrativa frenética, frase curta, ou o samba-canção, frase menos curta, da espera pelo amor, que não vem, da prosa contadora, não de causos – que não vêm ao caso –, mas de dramas, comédias, alegrias e tristezas do viver comum dessa rica fauna humana do planeta. Fauna que trabalha e sua e come o pão que até o diabo dentuço mastiga com sofrimento; fauna que faz e tenta brincar em paz o seu carnaval.
03. A mulher e o cavalo e outros contos, de Adrienne Myrtes.
Impressões de leitura. Nua e crua, a vida da mulher jovem, no atropelado mundo das ligações perigosas, digo amorosas. Os impasses, impulsos e tramelas que a realidade social impõe à fruição da vida a dois. Ilusões e desilusões como pele de carne de charque nos olhos da consciência da pessoa humana, na trajetória do desejo rumo à dignidade e à realização. Aprofundamento psicológico com o seu quê de Nelson Rodrigues, no dilacerado ambiente dos laços afetivos e na tragédia que envolve o amor em tempos de busca e desespero. Contos de narrativa linear, neste ponto, sem inovação formal, mas escritos com muita noção de enxugamento – aspecto bastante positivo no processo de criação de contos da autora, anunciando, assim, a construção de uma prosa vigorosa, que exige, inevitavelmente, a superação de alguns clichês inerentes ao universo social em que se movem as personagens e ao modelo narrativo adotado por Adrienne.
Um conto nos chama a atenção pelo que há de humor (até hilariante), que não se pode, propriamente, chamar de negro, por sua naturalidade real, e que apresenta bons requisitos para resultar em um sketch teatral: Café com tarecos. O projeto editorial de Marcelino Freire e a apresentação de Nelson de Oliveira ratificam a nossa aposta na caminhada literária de Adrienne Myrtes. Adelante, muchacha!