Porto Seguro -

Porto Seguro

Coluna • 2 de julho de 2012 • Neide Carvalho

Numa manhã de domingo, Teca de Adília Ribeiro, que como eu era ainda garota, foi até minha casa, no Exu, convidando-me para um passeio nos arredores da cidade. Não perdi tempo. Nem perguntei o percurso. Só imaginei que se tratasse de um passeio rápido que nos permitisse voltar para o almoço. Da sala da frente, gritei: “Mãe, vou ali e volto já”. E saímos.

Chegamos ao Sítio Santa Luzia, fomos à casa de dona Bela Apolinário e de lá nos dirigimos ao Uruguai, uma fazenda cuja casa principal é belíssima. Valeu a pena conhecê-la. Nessa época, lá, morava a família de Netinho Coelho, que nos recebeu carinhosamente, apesar de não termos muito conhecimento. Até hoje me admiro da atenção que nos deram, pois éramos umas garotas meio malucas.

Pedi a teca para não prosseguirmos, já que não conhecíamos aquela região. Ela, muito calma, porém decidida, não desistiu. Sem saber aonde chegar, tomamos um caminho que, por acaso, nos levou à casa onde morou o beato José Lourenço. Ali ninguém nos deu a menor importância, apenas água depois de tanto bater palmas e gritar “ô de casa”. Ainda perguntamos o caminho do Pau-Ferrado, a fazenda da mãe de Teca. A mulher, indiferente, nos apontou o fim do terreiro: “É por ali”. Que ali era aquele, se havia mais de um caminho?

A essas horas, o sol já ia alto, e o calor estava sufocante. A fome, meu Deus, eu já não suportava. Para encurtar a história, andamos a esmo. Não sabíamos se íamos ou se voltávamos, passando por casas onde nem pensar em chegar à porta, pois os cachorros vira-latas lá estavam a nos mostrar os dentes. Até que enfim Teca reconheceu o caminho do Pau-Ferrado e disse, alegremente: “- Aqui estou em casa!”. Eu já duvidava de tudo. Além da fome e da sede, veio-me o medo da chegada em casa. A essas alturas, Mãe já devia estar me procurando por toda a Exu. Quis voltar dali mesmo. Parecia que estava adivinhando o que estava por vir.

Ao caminharmos um pouco, nos deparamos com uma vaca brava que, nos pressentindo, veio correndo ao nosso encontro. Mal tivemos tempo de subir numa cerca de madeira. Ela não desistiu. Ficou a cavar a terra pronta a nos atacar. Tudo isso ciúme do filhote recém nascido. Felizmente o vaqueiro conseguiu levá-la para longe em sentido contrário da estrada. Descemos da cerca e, não demorou muito, ouvimos um barulho que mais parecia trovões. Quase não nos apercebendo do perigo, lá vinha num sei quantos jumentos de lote, mordendo uns aos outros, sem respeitar os obstáculos, na disputa por uma fêmea. Iam e vinham, na estrada, conforme a direção que a jumenta tomava.

Os jumentos de lote sempre foram perigosos. Por muitas vezes, nos dias de feira, no Exu, eles se soltavam e saíam de feira adentro, arrastando tudo, em meio a correrias e gargalhadas. Ai de quem e do que estivesse à sua frente. Corremos de novo para a cerca e por ela continuamos caminhando até uma casinha de taipa onde nos refugiamos.

Inesquecível casinha! Apesar da pobreza, era difícil outra igual. Limpa, cheirosa, aconchegante. As panelas de barro, arrumadas num jirau de varas raspadas, eram lisas sem o costumeiro carvão. Os potes cobertos com tampas de madeira e sobre elas paninhos redondos, “alvos como coco”. No piso de terra batida não se viu um fragmento de sujeira. E os copos de alumínio, estes espelhavam. A parede do Coração de Jesus e do Coração de Maria era forrada de papel colorido, dando maior destaque àquele ambiente saudável. Até perdi o medo da volta.

A dona da casa, dona Belisa, ao nos ver cansadas e famintas, prontamente nos armou umas redinhas velhas, porém super limpas. Enquanto repousávamos, ela pôs feijão pra cozinhar, temperado com pimenta de cheiro, pimentão e coentro colhidos na hora. Foi uma das mais gostosas refeições que provei. Não pelo dizer: “O melhor tempero é a fome”. Não, não foi somente a fome que lhe deu aquele sabor. Foi, principalmente, a paz, o aconchego daquela casinha.

Se fui castigada, na volta, não me lembro. Só sei que nunca me esqueci daquele nosso porto seguro. Que é de você, Teca, para confirmar a nossa aventura? Para eu poder ver aquele seu sorriso afogado, travesso ante as boas recordações? Se não o vejo, pressinto-o. Nem a morte consegue nos roubas nada do que fomos, principalmente se nos tornamos eternos por meio dos amigos.