Mulheres que desafiam os limites do corpo
No último dia do ano passado – ou seria no primeiro dia deste ano? – aconteceu a tradicional Volta de São Paulo. A prova de ciclismo é antiga. Centenas de pessoas e 100 quilômetros pela estrada. De repente, entre tantos tios, primos, sobrinhos, pai, mãe, papagaio, todos na minha casa naquela farofa de réveillon, alguém da minha família saí com ‘Olha! Quantas mulheres na prova. Que mulheres resistentes, estas’. O comentário me fez cair uma ficha. Sem desmerecer a volta de São Paulo, com dezenas de méritos para o ciclismo brasileiro, posso dizer sem pestanejar que entre 2008 e 2009 eu conheci de perto mulheres tão resistentes que a gente duvida que exista.
A gente cresce ouvindo falar em mulheres fortes, guerreiras. Há mulheres fortes, destas com cinco filhos e um salário mínimo. Há outras mais ainda, com outras forças, halterofilistas, de músculos pelas ventas. Algumas de poder divino, que perdem filhos, fadadas a buscarem a tal força das trevas, ou do além. Tem mesmo que ser muito forte pra perder um filho. Há umas que desafiam as regras, vão jogar futebol, arbitrar, fazer o diabo. Há Pagus, Joanas Darks, Marias Bonitas. Todas elas, mulheres fortes.
Mas entre elas, quase anônimas, há outra categoria de mulheres. As praticantes de Aventura. Em 2008, na minha primeira cobertura de Ecomotion, eu até vi umas delas bem emperebadas, coitadas, sofrendo. Mas, creio eu, que as informações eram tantas no primeiro Campeonato Mundial da modalidade, que só em 2009 eu, de fato, compreendi o tamanho da superação destas pessoas e, em especial, das meninas.
Tradicionalmente, a prova é cumprida em quartetos. E obrigatoriamente, é preciso ter uma mulher na equipe. Ou seja, 40 equipes, 120 homens, 40 mulheres. Agora pensa. Não é uma voltinha no Parque da Jaqueira, chuchu. São quase 500 quilômetros. As equipes enfrentam situações de despertar caridade no coração. E para vencer, os quatro precisam chegar juntos e cumprir juntos também todo trajeto. Deste total de quilômetros, parte é feito de mountain bike, parte trekking – que é corrida ou caminhada pelas trilhas -, parte dentro de caverna, parte de técnicas verticais, parte de canoagem, remando, trepando no pé de planta, escalando montanha, arrastando no chão. Tudo isso sem dormir, comer, tomar banho, escovar dente e até fazendo xixi nas calças. Isso mesmo.
Esta última edição foi na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais. A área abrange uma região de serra, montanhosa, com pedras, cavernas, cânions, um sol desgraçado de dia, frio à noite, e montanhas, muitas montanhas. Infinitas, intermináveis. Nós, jornalistas, tentamos acompanhar a prova de perto, através dos pontos de transição e de passagem obrigatória. Na metade do percurso, em um desses pontos, o rádio do helicóptero avisou que uma equipe estava por chegar. Era a Timberland Selva Kailash. Eu tinha batido um papo com eles ainda antes da largada, na Serra do Cipó. Após 230 quilômetros, vê-los chegando deu dó.
Apesar de a equipe ser brasileira, de São Paulo, a mulher componente é Argentina. Soledad Maria Cristiano. E quando virei meu pescoço para a esquerda, ela foi protagonista de uma das cenas mais incríveis que posso ter visto. Por entre os matos, a equipe varou a selva. E ela vinha carregada pelos colegas nas costas em um trecho onde finalizava um trekking para iniciar quilômetros de MTB. O rosto dela beirava o desespero. Alguns dias já haviam se passado. Os seus pés eram carne viva. Não era um dedo. Não era um calo. Eram os dois pés inteiros em carne viva. Ela estava imunda, fedia a urina velha. Os meninos, João Bellini, Marcelo Sinoca e Carlos Eduardo Fonseca, puseram-lhe sentada em uma das cadeiras do apoio e, enquanto ela passava mal, mas muito mal mesmo, todos agiam normalmente. Trocavam os equipamentos, as roupas, e socavam rapidamente uma barra de proteínas no estômago. Uma pessoa do apoio lhe ajudava. Ela já não agüentava mais. Mas aguentou. Levantou, trocou seu equipamento. A bike dela precisava ir junto. E quando todos achavam que ela não iria, ela foi.
Antes de sair deste ponto de apoio, os meninos armaram uma gambiarra. Uma rede improvisada amarrada em duas bikes para que ela deitasse. Enquanto dois componentes a carregavam, o outro carregava duas bikes floresta adentro. A esta altura, a equipe, que estava em terceiro lugar, terminou em sexto. Mas para o espírito de quem desbrava as matas, terminar é a maior provação. Um dia e meio depois, lá estava a Soledad, cruzando a linha de chegada, agora com pés em carne viva e também com as mãos, depois de quilômetros rio adentro, remando na madrugada sem parar.
ENQUANTO ISSO, AS DESBRAVADORAS
Quando o tema é força física, não tem “mi-mi-mí”. Os homens saem, sim, na frente. Não é por acaso – muito menos por preconceito – que em todas as modalidades os recordes e índices masculinos e femininos são distintos. Naquele momento, Soledad não tinha nada de inferior. Ela finalizou a prova. Cumpriu seu objetivo. Carimbou o seu compromisso. Era como se fosse uma espécie de honra de atleta, que não podia deixar os colegas na mão.
Mas nem só de sofrimento vive a corrida de aventura. Enquanto a Soledad perdia posições, à sua frente, uma mulher desbravava aquela serra com tanta maestria quanto os rapazes. E sem moleza. Tarefas divididas igualmente, pesos distribuídos. Tessa Roorda venceu o Ecomotion Pro 2009 junto com aos colegas da Quasar Lontra, o capitão Rafael Reys, Rodrigo Souza e Erasmo Cardoso. Alguns quilômetros antes de terminar a prova, na Gruta do Salitre, ela foi a primeira a descer na corda dos verticais. 70 metros. Quando vi aquela cena, tinha certeza que iam vencer.
O que se espera de uma mulher que pratica este tipo de esporte? Alguém grande? Forte? Nada disso. A Tessa deve ter pouco mais que 1m50 e é magrinha, magrinha. Com a tranquilidade do mundo inteiro, enquanto esperava os colegas descerem no Canion pra se enfiarem todos juntos na caverna, sentou, sorriu, trocou ideias, comeu uma banana, tomou uns goles de água. Uma serenidade que, ainda com as pernas mais esfoladas que depilação com gilete cega parecia mais que tinha vindo das compras no shopping. Dito e feito. Foi ela mesma quem cruzou primeiro a linha de chegada. Depois de mais um dia inteiro de ‘comprinhas pelo shopping’ da Serra do Espinhaço.