Recordações em registro
Quais são as tuas recordações? Quais imagens lhes voltam à mente quando pensas no passado? Por que lembras determinados acontecimentos e esqueces outros tantos?
A mente humana é, sem duvida, plena de mistérios. Nenhuma teoria psicológica parece ter sucedido em nos dar uma explicação completa sobre o fenômeno que envolve a lembrança ou esquecimento. Freud, no livro “Forgetting things”, fala do processo de esquecimento como algo aliado ao tempo, e enfatiza o fato de que quando algo é esquecido, um tipo de seleção é feita entre impressões disponíveis. E que, geralmente, esquecemos fatos que nos provocam aversões.
Numa perspectiva sociológica, a memória não é só um fenômeno de interiorização individual, ela é também uma construção social e um fenômeno coletivo. Sendo uma construção social, a memória é, em parte, modelada pela família e pelos grupos sociais. A memória individual, de certa forma, se estrutura e se insere na memória coletiva.
No entanto, na tradição filosófica, a memória esta atrelada à imaginação e uma experiência interior, visando, neste sentido, o passado construído por imagens e representações. A memória, como experiência unicamente interior, demonstra certa vulnerabilidade já que pode ser realidade ou criação. Nossas lembranças se fortificam a partir das narrativas coletivas. Muitas vezes, lembramos de situações, mas não temos certeza de sua veracidade. É como se precisássemos de uma confirmação para tornar nossas lembranças realidade.
Uma vez, me veio à lembrança o dia do meu batizado, realizado quanto eu já tinha uns tantos anos de vida. Lembrava-me do vestido branco e do chapéu de longas abas que eu usava, mas o mais significativo era a sensação de ter estado na casa da minha avó. Tudo muito longínquo, como num sonho. Ao rever o álbum de família, vejo, então, duas fotos: eu toda vestida de branco com o meu lindo chapéu de abas dentro de uma casa. A segunda foto mostrava a minha avó ao meu lado, nos duas estávamos em frente a uma casa. Ate hoje, não sei se aquela era a casa da minha avó.
Esta lembrança passou a ser uma fotografia. E a existência desta fotografia comprova a minha lembrança, mas a foto é a evidencia da minha memória ou sugere que a minha lembrança, na verdade, foi construída anos após o meu batizado? A minha lembrança foi baseada em um registro ou na realidade? A minha lembrança perdeu-se nestes muitos anos, desde que eu fui batizada, e o que resta é um momento congelado no tempo. Uma fração de segundo que evidencia o meu batismo e a presença da minha avó.
Mas a relação intima que possuo com estas fotografias esta presente, mesmo não tendo sido eu a autora de tais retratos. A minha presença e a presença dos meus familiares e amigos, nessas fotografias, desperta lembranças e, assim, sentimentos, pois em ordem de mostrar evidências uma fotografia precisa apontar para longe de si mesma. Fotografias de família não são tanto para nos mostrar que estamos ali, mas, sobretudo, para evocar memórias que terão pouco ou nada haver com o que foi registrado na fotografia de fato.
O livro “Family snaps: the meaning of domestic photography” questiona para quem estas imagens são manufaturadas tão cuidadosamente e espontaneamente. Relata que nós experiênciamos nossas memórias com certa tensão entre o momento pessoal da memória e o momento social de fazer memória, indicando, assim, que o processo de fazer sentido e fazer memória são caracterizados por certa fluidez. Mas, sentidos e memórias podem mudar com o tempo, podem ser mutuamente contraditórios e podem até haver ocasiões nas quais será uma expressão de conflito.
Existe certo pudor nos retratos de família, nos que fazemos de amigos. Um código social e estabelecido no momento do registro. As fotografias de Nan Goldin e Richard Billingham vão de encontro a este código social. Nan Goldin, por fotografar seus amigos e parceiros em situações íntimas. As pessoas encaram a câmera sem nenhum medo, ou simplesmente não se distanciam da câmera, pois quem os fotografa é alguém conhecido. Richard Billinghan ao fotografar sua família os retrata em seu dia a dia, em casa. Ele, o fotógrafo, faz parte daquele meio. Foi nascido e criado naquele entorno.
A frase marcada no livro “Ray’s laugh” de Richard Billinghan: Ao ver esta fotografia deixe os pudores de lado. Esta é uma família! Enquanto a intenção das fotografias de Nan Goldin teve uma cultura baseada no: não deixe os vizinhos saberem, e deixe os vizinhos saberem o que esta acontecendo.
Olhar estas fotografias, refletir sobre os mecanismos de controles sociais que são exercidos do nosso passado para o nosso futuro e, ainda, perceber que quando batemos uma fotografia comprometemos o nosso presente a ser reconhecido por um futuro desconhecido deveria nos fazer explorar este meio com maior sinceridade. Não apenas momentos padronizados, mas momentos que, de fato, nos rememore emoções e lembranças, momentos que nos façam refletir e questionar, momentos que façam aqueles do futuro reagir e não apenas dizer X.
Confira algumas fotos de Nan Goldin