Fotografia, estética e as marcas do tempo
O fazer fotográfico está intimamente ligado ao tempo. O fotógrafo dispara o obturador, buscando registrar um instante no tempo, um instante irrepetível. Com a fotografia, tem-se a impressão de que o momento foi congelado, que um pequeno fragmento da “realidade” foi parado para que pudéssemos contemplá-lo. “Tirar uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa [ou coisa]. Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo”, diz Susan Sontag.
O tempo se esvai, mas suas marcas ficam registradas a partir das linguagens. Essas marcas são conferidas à imagem através do estilo. O estilo determina parâmetros que nos fazem perceber a ordem cronológica da imagem, o seu tempo, ainda que cada autor confira à sua obra características peculiares. Os estilos estão relacionados à história cultural e social, no entanto, podem transcender os momentos históricos e perdurar. Os estilos são verdadeiros esquemas do Belo.
A noção do que é Belo, no entanto, é discutida desde Platão e, até hoje, vem sofrendo modificações. Discutir sobre o belo é lidar com diferentes conceitos ao longo da história da humanidade. A Beleza, na concepção de Platão, é uma referência ao divino, uma referência ao mundo das ideias, é algo sublime que não existe nesse mundo material em que vivemos, e, sim, no mundo espiritual. O mundo material tentaria, de acordo com Platão, copiar a Beleza Absoluta do mundo espiritual, através da arte.
Essa noção de cópia é denominada, por Platão, de Mimese. A mimese é, pois, uma cópia, uma imitação da realidade. Já Aristóteles toma a mimese como representação superior do sensível e não como a reprodução imperfeita do absoluto.
Para as artes de um modo geral, esse conceito foi o início de discussões em torno do significado da arte. O conceito de mimese foi o primeiro a detectar e discutir o problema da duplicidade da arte, que, ao longo dos séculos, receberia as mais variadas denominações, entre elas, representação, expressão, simulação e etc. Todas essas denominações, no entanto, não passavam de deslocamentos ou variações em torno do tema levantado por Platão, a mimese.
Contudo, é a partir das concepções de Aristóteles que o conceito de mimese incorporara a questão significativa da representação, inserindo a beleza no campo dos objetos reais.
Aristóteles trouxe outras contribuições para a arte, pressentiu a fragmentação estética para além do estudo do Belo quando incluiu a arte do feio (a comédia) no campo estético. E ainda percebeu o aspecto subjetivo da beleza, ou seja, o papel do contemplador no processo de apreensão da Beleza. Ainda assim, os estudos aristotélicos estavam voltados para o objeto e não para o sujeito.
A partir da discussão sobre o belo, levantaram-se as questões estéticas. O termo Estética nasceu na Alemanha, usado por Baumgarten, significando teoria das artes liberais, arte de pensar belamente, arte da razão análoga. Baumgarten não queria investigar o mero gosto, nem as meras sensações, mas um modo de conhecimento. Com ele, a estética tornou-se a disciplina que estuda a finalidade do Belo. No entanto, nesse contexto, a estética tinha uma ordem objetiva, como se leis pudessem ser criadas para determinar os parâmetros do belo. A estética, mesmo com as percepções de Aristóteles, estava voltada para a estrutura do objeto e não para a interpretação do sujeito.
Coube a Kant o mérito de colocar o sujeito no centro das concepções estéticas. A beleza, de acordo com os valores kantianos, diz respeito a julgamentos, os indivíduos, diante de uma obra de arte, têm diferentes reações. Essas reações estariam atreladas ao que Kant denominou de juízos estéticos (ou juízos de gosto), e juízos de conhecimento. O juízo de conhecimento está relacionado a um conceito geral, indiscutível. Por exemplo, uma mesa que é branca será vista por todo mundo como uma mesa de cor branca. É uma característica objetiva da mesa, ser branca. Já o juízo estético está relacionado à reação pessoal do contemplador em relação ao objeto, é um juízo de valor, um juízo de gosto.
Enquanto o juízo de conhecimento possui conceitos de valores universais, o juízo de gosto tem valores subjetivos, mas pretende ser universal. Deste fato reside um paradoxo kantiano: como o juízo de gosto, que é um juízo de valor individual pode se tornar universal? Kant explica a razão desse paradoxo: “O motivo disso é que a Beleza, a satisfação determinada pelo juízo de gosto, é resultante de faculdades necessariamente comuns a todo homem, a sensibilidade, ou imaginação, aliada talvez ao entendimento”.
A discussão sobre estética permeia várias outras perspectivas filosóficas, modifica-se de acordo com o tempo e até o transcende. As discussões, geradas a partir desse tema nos fazem perceber a subjetividade daquele que interpreta e a relação da interpretação com a imaginação. Já em relação aos objetos estéticos, que neste texto são constituídos pelas imagens, a discussão leva à percepção de que não são apenas imitações da realidade, mas, sim, uma recriação, uma transformação, uma deformação da realidade.
Essa abordagem estética estava voltada para a arte, mais especificamente para as belas artes: pintura, música, poesia e escultura. Embora a fotografia tenha surgido no século 19, a discussão estética sobre fotografia se inicia com o picturalismo e ganha força com os dadaístas e surrealistas, que introduziram as fotos no contexto artístico, tentando quebrar o conceito de arte e introduzir uma outra maneira de perceber a realidade. Os meios mecânicos (fotografia, cinema, vídeo) modificaram as concepções estéticas desse tempo, até mesmo porque essas formas mecânicas de representação possibilitaram novas maneiras de significar o mundo, trazendo, junto a essa significação, outras características estéticas.
Com a foto, surge uma nova maneira de representação, os parâmetros estéticos passam a ser outros, o real é embebido de beleza pela reprodução fotográfica. É como se a realidade, mesmo com as suas mazelas e “feiuras”, na foto se tornasse bela. Sontag fala da crueldade da câmera e como até mesmo essa crueldade produz outro tipo de beleza: “A câmera pode ser leniente; ela é também uma especialista em crueldade. Mas sua crueldade só produz outro tipo de beleza, segundo as preferências surrealistas que regem o gosto fotográfico. Assim, se a fotografia de moda baseia-se no fato de que algo pode ser mais belo numa foto do que na vida real, não é surpreendente que certos fotógrafos que servem à moda sejam levados ao não fotogênico”.
A partir do momento em que o valor moral da realidade é aumentado pela reprodução fotográfica podemos falar em fotogenia. Primeiramente, o termo fotogênico era considerado como a capacidade de acrescentar a verdade aos fatos nus, estando essa verdade atrelada à capacidade individual do fotógrafo de expressar a realidade. Atualmente, a fotogenia está relacionada ao momento inesperado, inusitado, captado pela foto; o fotogênico deixou de ser uma atribuição do fotógrafo para a foto e passou a ser uma qualidade dos elementos fotografados. A coisa ou a pessoa fotografada é mais bonita que na realidade. Ser fotogênico significa que ele é “mais bonito” em fotografia do que ao natural, a foto mostra um encanto eventualmente ausente na pessoa real, disse Jacques Aumont.
Esse encanto ausente que a fotografia atribui aos elementos fotografados contribui para uma discussão no plano estético. A beleza que a foto atribui aos objetos nos faz olhar o mundo sob perspectivas idealizadas, simuladas. Antes, o belo era uma característica enaltecida pertencente ao mundo das ideias, dos ideais, depois a beleza foi atribuída aos objetos artísticos, a arte tentava, de certa forma, representar o belo. Mas, com a fotografia os padrões de beleza passam a ser outros, até mesmo porque a própria fotografia, com a sua capacidade fotogênica, vai ser o próprio padrão de beleza no mundo contemporâneo e não mais a realidade.
O simulacro passa a ter mais beleza do que o real. É a partir do dispositivo fotográfico que a beleza se mostra ao mundo, e essa beleza não tem necessariamente a ver com o belo, mas pode ser o feio, o bizarro, a tragédia. Sob a ótica fotográfica a estética passa a ser percebida de outra maneira. “Tendo a fotografia como veículo de determinada reação contra o convencionalmente belo, podemos dizer que a ela serviu para ampliar imensamente a idéia do que é esteticamente agradável”, diz Sontag.
A modificação que a fotografia trás para a percepção do campo estético pode ser notada na imagem de um assassinato que ocorreu no Recife, Estado de Pernambuco.
Observando essa imagem percebemos beleza no ato trágico. As cores, as formas nos fazem apreciar a imagem de tal maneira que quase esquecemos o próprio ato. Recebemos a imagem como se fosse um espetáculo. Essa fotografia representa, de certa maneira, algo grandioso que se desprende no primeiro impacto, do mundo real e toma dimensões dramáticas a partir do momento em que a contextualizamos.
O contexto da fotografia está relacionado à sua funcionalidade; uma foto é feita para um jornal, para uma publicidade, para um editorial de moda, para uma exposição artística, ou seja, a foto é feita e interpretada de acordo com uma linguagem. Esta linguagem determina os padrões estéticos que cada fotografia possui. Cada fotografia obedece – podemos assim dizer -, uma linha, um segmento, uma escola.
Confira algumas fotos da Larissa Alves