O Sujo -

O Sujo

Matéria • 11 de dezembro de 2010 • Lady Foppa

Não me lembro ao certo quando passei a envergá-lo, acho que foi quando o seu aspecto rude passou a incomodar-me, precisamente em um trecho do caminho de Santiago em que fiquei com sede e sem água. Desolada eu tentava em vão buscava algumas gotas de água da garrafa que 10km antes já havia sido bebida totalmente, quando ele surge em uma curva: parecia tudo, menos um peregrino. A barba era grisalha e se misturava ao cabelo que parecia uma vassoura de bruxa, vestia uma camiseta velha e encardida combinando com a calça da mesma “etiqueta”. Calçava um par de velhas sandálias rotas, não levava mochila, apenas um saco encardido preso às costas por cordões, usava um cajado desajeitado como ele, olhando aquela figura singular eu julguei que o último banho que ele havia tomado tinha sido com águas do dilúvio bíblico.

Diante da minha cara de desolação com a garrafa vazia na mão, o estranho tirou de dentro do saco uma garrafa com um resto de água e oferece-me sem nada dizer, agradeci, mas não aceitei, ele simplesmente volto à garrafa para o saco e se foi. Bateu um arrependimento, não custava nada ter aceitado a água, maldito orgulho o meu, julguei o homem pelo aspecto, talvez a água fosse até mineral, mesmo que não fosse era água e era tudo que precisava, caminhei com sede amaldiçoando o estranho: – Sujeito mais sem iniciativa, por que ele não insistiu? Se tivesse insistido eu teria aceitado e não estaria com a garganta trincando, odiei o estranho sujo e sem alma.

Cheguei ao albergue e encontrei com Laura, uma peregrina conhecida que ás vezes caminhávamos juntas, era o ano de 1998, não haviam muitos peregrinos no caminho e era gratificante encontrar uma amiga brasileira. Dividimos um macarrão com atum e quando entrei no aposento onde iria dormir, deparei-me com o “sujo” na cama ao lado da minha. Ele estava escrevendo e o ignorei, (até estranhei ele saber escrever) comentei com Laura o episódio da água, falei que jamais colocaria minha boca numa garrafa imunda daquelas embora soubesse que estava mentindo porque lamentei a falta daquela garrafinha. Laura deitou no beliche de cima e eu fiquei em baixo ao lado do “sujo”. Antes de dar boa noite a Laura, comentei com ela que estava preocupada em dormir ao lado do “sujo”, porque pelo aspecto ele deveria ter pulgas sonâmbulas que passariam para minha cama, Lauro achou graça do comentário infeliz e dormiu. Eu sonhei a noite toda que chovia pulgas!

Levantei bem cedo e peguei meu sanduíche que havia deixado na geladeira. Deixei outro para Laura e conferi minhas roupas para ver se tinham adquirido pulgas e conclui que as pulgas do sujo eram fiéis a ele para meu alívio.

Caminhei sozinha a maior parte do tempo com chuva, alguns espanhóis passaram por mim, mas preferi seguir só. Cheguei ao próximo albergue molhada até os sonhos, era um albergue municipal, estava aberto e não havia viva alma. Fui até um bar, comprei um bocadillo, tomei um banho reconfortante e fui escrever meu diário. Estava torcendo para chegar alguém com quem eu pudesse conversar e foi ai que ele entrou no recinto pingando água, pois o infeliz nem tinha capa de chuva. Fez um leve aceno com a cabeça e eu respondi com um sorriso sem graça, para puxar conversa perguntei se ele sabia da minha amiga, ele apenas fez um gesto negativo com a cabeça e ignorou-me, além de sujo é mal educado, pensei.

Ele tomou banho (embora continuasse com o mesmo aspecto) lavou as roupas esfarrapadas e colocou sobre uma cadeira onde improvisara um varal. Pensei comigo: -Além de aturar o cheiro dele tenho que aturar o cheiro dessas roupas mal lavadas, estou sendo castigada, acredito que em outra encarnação eu colei chiclete na mesa da santa ceia ou atirei pedra na cruz. Dormimos em extremos do albergue e senti um alívio quando parei de respirar o mesmo ar que dividia com aquele homem mal educado que nem se quer desejou-me boa noite.

Sai do albergue ainda estava bem escuro, ás 10h encontrei Laura que havia dormido em um albergue anterior, mas pegara um ônibus porque precisava chegar à próxima cidade antes da “siesta” para comprar uma nova capa de chuva porque a dela havia rasgado com o vento. Comentei sobre minha noite desagradável e o quando eu estava infeliz com a presença do “sujo”.

No próximo albergue ficamos juntas, conhecemos alguns ciclistas franceses, eram jovens e bem humorados, tomamos vinho e fizemos juntos um cozido de batatas com carne de porco, ficou delicioso. Estávamos jantando quando o sujo adentrou ao recinto, parecia faminto como sempre, fiz um prato e ofereci a ele que para meu espanto aceitou e sorriu. Enquanto conversávamos ele recolheu toda a louça e lavou cuidadosamente. Os jovens tentaram falar com ele em inglês, francês, alemão, espanhol, mas ele apenas balançava a cabeça e nada respondia, e foi assim que concluímos que além de sujo ele era mudo e deveria ser também surdo, porque não se incomodava com nossos barulhos.

Quando estava arrumando minha mochila, percebi que tinha uma camiseta que quase não usava, ela era bem grande e estava pesando na mochila, falei a Laura que pela manhã iria deixar a camiseta dobrada sobre as sandálias do “sujo”, ele pensaria que havia sido um gesto dos ciclistas e faria um bom uso, ao menos andaria mais decente. Saímos do albergue e a camiseta ficou como regalo, meio hora de caminhado e o “sujo, surdo, mudo” passou por nós, deu um leve aceno e se foi vestido em farrapos.
Falei para Laura na maior altura:

— Olha que absurdo, além de sujo, surdo, mudo, o infeliz ainda é orgulhoso, não aceitou o meu presente!

Laura falou que eu havia feito a minha parte, se ele era mal agradecido o problema era dele, que estávamos no caminho para nos tornamos pessoas melhores e que humildade, solidariedade e generosidade eram lições a serem aprendidas e ensinadas.
Na próxima cidade, havia dois albergues e ficamos com um grupo de espanhóis que faziam trechos do caminho nos finais de semana. Eram gentis, simpáticos e acolhedores, havia no grupo um casal que tinha vivido algum tempo no Brasil, falaram português conosco e mataram saudades. O sujo,surdo, mudo, orgulhoso não apareceu e eu comentei com Laura que estava aliviada sem a presença desagradável da figura, mas disfarçadamente eu guardava uma sobra da janta na geladeira caso ele aparecesse, mas não apareceu!

No albergue seguinte encontramos novamente com nossos amigos espanhóis e foi uma alegria. O “coitado do sujo” apareceu, mas ficou alheio ao grupo escrevendo no seu canto, tive pena dele, parecia tão só dentro dele que tive ímpetos de dar lhe um abraço, comentei com Laura minha vontade e ela incentivou-me a fazê-lo, até dei dois passos em direção ao coitado, mas depois voltei e falei para Laura:

— Melhor não Laura, seguramente aquela barba e cabelos tem pulgas…

Ficamos olhando para o coitado e rindo, ele nos olhou e riu também, o bobo!

Após a nossa euforia, fui conferir meu dinheiro e percebi que só tinha alguns trocados, eu havia esquecido de retirar dinheiro no banco, pergunte a Laura se poderia me emprestar 20 dólares até segunda-feira, mas ela falou que também estava com pouco dinheiro, mas que dividiríamos o pouco que tínhamos e que Santiago cuidaria para que não faltasse nada para nós. Dormi mal naquela noite, preocupada com a falta de dinheiro, acordei tarde, Laura havia saído e encontrei 20 dólares preso na fita do meu cajado, Laura havia deixado todo o dinheiro dela para mim e aquele gesto levou-me as lágrimas.

Encontrei minha amiga em um campo de Gira sois, dei a ela um grande abraço e agradeci o gesto que ela fizera. Laura levou o maior susto e garantiu que não havia deixado dinheiro algum, foi ai que chegamos à conclusão que fora o casal de espanhóis que moraram no Brasil os autores do milagre, eles estavam no mesmo aposento e como entendiam nosso idioma haviam se tornado nossos anjos salvadores. Entramos em uma Igreja e rezamos por eles, esse é o caminho de Santiago, pensei!
No próximo albergue não encontramos o grupo, lamentei muito, gostaria de agradecê-los e pegar o endereço para ressarcir o dinheiro, pois sabia que só caminhariam até domingo.

Foto: Margarida Parente/ Revista Zena
Foto: Margarida Parente/ Revista Zena

Pela primeira vez vimos peregrinos que faziam o caminho a cavalo, fiquei pensando que na verdade quem peregrinava eram os animais, não gostei e penso que o apóstolo também não acha isso honesto.

Após o jantar, sai para comprar pão, presunto e queijo para fazer sanduíches que seria nosso almoço, ao invés de dois pães comprei três e fiz um para o sujo, surdo, mudo, coitado e bobão. Antes de dormir falei para Laura (que saia depois de mim sempre) pegar na manhã seguinte o sanduíche que estava na porta da geladeira para ela e o outro que estava na sacola era para colocar sobre as sandálias do “sujo”. Laura perguntou porque ela deveria pegar o da porta e eu respondi que o da porta tinha mais queijo, estava mais recheado, e como cavalo dado não se olha os dentes, estava mais do que bom o sanduíche que havia feito para ele. Laura achou graça, eu sorri alto, olhamos para o “sujo” que escrevia e pela primeira vez ele sorriu para nós, era um sorriso amigo, com quem sorri com a boca, com os olhos e com a alma. Fiquei com tanto culpa que quando sai deixei meu sanduíche feito no capricho para ele e peguei o outro. Ao comi senti que aquele era sem dúvida o melhor sanduíche da minha vida!

No alto de uma montanha fiz uma avaliação do meu caminho e conclui que havia me tornado uma pessoa melhor, me senti como um diamante que após alguns cortes consegue refletir mais luz, o caminho havia caminhado dentro de mim, moldado meu espírito, esvaziado minha alma de mágoas e antigo rancores. Eu estava mais leve, estava feliz e imensa na paz, havia me transformado em paz.

Fazia dois dias que não víamos o peregrino estranho, mais um dia de caminhada e chegaríamos a Santiago, senti um remorso por não ter pedido que escrevesse o nome dele para eu saber como me referir a ele, eu havia sido horrível com o pobre coitado, nem uma foto eu havia feito dele e ele havia sido parte do meu caminho. Cheguei a Santiago com essa culpa.

Após todas as emoções que marcaram minha chegada a casa do Apóstolo e consequentemente a minha vida, eu e Laura fomos comemorar em um bar que tem mesas na calçada. E foi aí que observei um senhor muito distinto, de boné, óculos de sol, falando ao celular como se estivesse extremamente feliz, o estranho é que ele estava vestido minha camiseta onde estava escrito o nome do meu estado e do meu país, eu a reconheceria entre centenas, porque eu havia mandado bordar: CAMINHO DE SANTIAGO – GOIÁS-BRASIL.

O homem era português e eu entendia perfeitamente o que ele dizia, fiquei com vontade de perguntar onde ele havia conseguido a camiseta, Laura aconselhou-me a não fazer isso, poderia causar constrangimento ao senhor distinto. A cerveja sufocava-me, não descia pela garganta, não gosto de coisas mal resolvidas, estava angustiada e não parava de olhar para o homem que falava o tempo todo o celular, nos ignorando, em dado momento ele parou de falar, caminhou em nossa direção, parou na minha frente, olhou-me nos olhos e disse:

— Bem peregrina, com o caminho concluído terminou meu voto de silencia, quero que saibas que o sanduíche estava delicioso e muito bem recheado, como podes ver eu apreciei o presente que estou vestindo, não tenho pulgas, estou de banho tomado e gostaria de receber aquele abraço que ficou a dever-me alguns dias atrás.

Foi o abraço mais aconchegante da minha vida, rimos muito quando ele falou:

— Após o sujo, mudo, surdo, orgulhoso e bobão acrescente VICTOR MANUEL!
Tornamo-nos grandes amigos, tiramos fotos, visitamos igrejas, jantamos juntos e trocamos emoções como velhos companheiros de jornada.

Acompanhamos Victor Manuel até o aeroporto onde nos despedimos, quando ele estava entrando na sala de embarque lembrei do dinheiro e gritei!

— Hei Victor, e os 20 dólares? Preciso acertar contigo, foi você quem deixou?

E ele sorrindo respondeu: Não, foi o Apóstolo, acerte com ele!

Lady Foopa (Foto: Margarida Parente/ Revista Zena)
Lady Foopa (Foto: Margarida Parente/ Revista Zena)

O texto de Lady Foppa ganhou o 1º lugar do VIII Concurso Literário de Narração, organizado pela AGACS. Foi publicado na revista internacional LibRedón, n° 19-20. Fotos de Margarida Parente.