Bolsonaro, Tas e os Cães que Ladram
A história foi assim: o deputado federal Jair Bolsonaro participou de um quadro do programa CQC, da Rede Bandeirantes, chamado O Povo Quer Saber, onde respondia a perguntas feitas por diferentes pessoas, de diferentes lugares e sobre os mais variados assuntos. Nesta pequena entrevista, nosso excelentíssimo deputado fez o que todos esperavam que ele fizesse: repetiu seu discurso preconceituoso sobre negros e gays sem tirar nem pôr. Sim, porque Bolsonaro nunca disse absolutamente nada de diferente do que falou no CQC. Seu histórico racista e homofóbico data dos primórdios de sua candidatura, e mesmo assim ele está em seu sexto mandato. É. SEXTO. Durmam com um barulho desses.
O fato é que eu não havia visto o CQC neste dia, mas passei a semana inteira ouvindo falar sobre o assunto, que repercutiu estrondosamente. O programa seguinte eu estava assistindo, e naturalmente o tema foi abordado mais uma vez, até porque o episódio, que tanto pano deu pra manga, aconteceu justamente ali. Os CQCs entrevistaram pessoas, políticos e, claro, o próprio Bolsonaro, que não retirou nada do que disse, mas puxou do bolso uma foto de um sujeito que, segundo ele, é seu cunhado – além de mulato – e pronunciou: vejam, ele é negro, é meu cunhado e eu o amo. Ok. Não foi exatamente isso, mas era por aí. Quando voltou ao estúdio, Marcelo Tas também puxou de baixo de sua bancada uma foto de sua filha Luiza, de 22 anos, que estuda nos Estados Unidos, possui excelentes credenciais e é gay. Marcelo afirmou que sente muito orgulho dela, e terminou o CQC.
Eu achei aquilo bem bacana da parte do Tas, e até comentei o acontecido com a minha mãe. No entanto, durante a semana, ouvi comentários de alguns chatonildos sobre o que consideravam a ‘atitude mesquinha’ de Marcelo Tas. Disseram que mostrar a imagem de sua filha e dizer que ela é gay e que tem orgulho dela e iabadabadú foi ‘apelativo e desnecessário’. Aparentemente, algumas pessoas acharam que Tas insinuou que ‘APESAR DE’ gay, ele se orgulhava de sua filha – logo, foi preconceituoso também. E mais: que nem deveria ter dado espaço em seu programa para xiitas malucos da categoria de Bolsonaro, pois isso apenas insuflava e dava eco aos cidadãos que não somente pensam como Bolsonaro, como também votam nele.
Uma frase que muito li e ouvi por parte destas pessoas foi a proferida certa vez por Millôr Fernandes: “Não se amplifica a voz dos imbecis”. Bem. Eu não acredito em nada disso, e considero o conceito de imbecil tremendamente relativo, já que aquilo que é imbecil para mim pode não ser para você. Mas acredito, sim, que somos todos iguais, não somente perante a lei, mas perante qualquer situação. Nossa constituição diz exatamente a mesma coisa. No entanto, apesar disso, muita gente, muita gente mesmo, pensa diferente de mim, de ti e da constituição, e acredita piamente que algumas pessoas, por serem gay, negras ou jogadoras de rúgbi, são diferentes, e mais: são inferiores também.
É um absurdo, eu sei, mas o mundo está cheio de militantes hitleristas disfarçados sob as mais variadas formas – e é exatamente aqui que reside o problema. É consenso que ninguém tem o direito de atentar violentamente contra quem quer que seja. Contudo, a mesma lei que pune crimes como homofobia e preconceito, garante o direito a liberdade de expressão de qualquer cidadão, independente de suas crenças e opiniões, e isto se chama DEMOCRACIA. Como disse o economista americano – e negro – Walter Willians, em entrevista que tive oportunidade de ler recentemente, “o verdadeiro teste sobre o nosso grau de adesão à idéia da liberdade de associação não se dá quando aceitamos que as pessoas se associem em torno de idéias com as quais concordamos. O teste real se dá quando aceitamos que as pessoas se associem em torno de idéias que julgamos repugnantes. O mesmo vale para a liberdade de expressão. É fácil defendê-la quando as pessoas estão dizendo coisas que julgamos positivas e sensatas, mas nosso compromisso com a liberdade de expressão só é realmente posto à prova quando diante de pessoas que dizem coisas que consideramos absolutamente repulsivas”.
Isso significa que, por mais que eu, você e nossos amigos acreditemos na igualdade, e achemos o preconceito de qualquer espécie tão absurdo que chega aos limites do inacreditável, nem todo mundo concorda conosco. E da mesma maneira que temos o direito garantido por lei de acreditar que somos todos iguais, outros possuem o mesmo direito, garantido pela mesma lei, de achar que não, que não somos todos iguais.
Preconceito, homofobia e racismo são assuntos que precisam ser levantados e debatidos à exaustão, bem como, por exemplo, aborto e legalização de drogas. A discussão destes temas, por mais inútil e desagradável que nos pareça, necessita acontecer com a seriedade e a atenção devida.
O CQC, quando trouxe Bolsonaro para uma entrevista, sabia o que Bolsonaro pensava. E o objetivo era justamente este. Colocar um homem que ocupa um cargo representativo em nossa sociedade na frente dos holofotes, e apresentar a quem pudesse interessar tudo o que ele pensa, tudo no que ele acredita. E, sendo ele representante de uma parcela da população brasileira (repito: ele está em seu sexto mandato), expor o que boa parte dos brasileiros também pensa, também acredita. Pois, podem crer os politizadões: a maioria das pessoas sequer sabia que o Bolsonaro existia.
Trazendo o Bolsonaro para a TV aberta, em um programa assistido por milhares de jovens (muitos, apesar da pouca idade, já bastante preconceituosos), o CQC, além de apresentar para a maioria da população brasileira o excelentíssimo deputado e suas excelentíssimas opiniões, trouxe também à tona o assunto preconceito & homofobia. A prova foi a semana que procedeu a fadada entrevista, onde todo mundo se debruçou sobre este assunto que, inacreditavelmente e em pleno século 21, ainda é tabu. Pode não ser para mim, pode não ser para você nem seus amigos; mas o é para mais gente do que sua vã filosofia pode supor.
É de suma importância que entendamos que o problema é bem maior do que parece, ou do que nos é confortável acreditar. E quando arrancamos um assunto deste porte do fundo do baú e nos propomos a falar sobre ele, encara-lo de frente, nem que seja na marra, alguma coisa começa a se modificar. E isso é saudável. Somente falando sem medo sobre um tabu é que poderemos quebrá-lo. Tas mostrou a foto de sua filha para nada, além de dizer para um país racista, porém enrustido, que ele tem uma filha homossexual e não somente caga para isso como se orgulha dela pela pessoa que ela é. E Tas, independente do que você pense sobre ele, é um homem conhecido, respeitado e solicitado, ídolo de algumas milhares de pessoas que o vêem como exemplo, que o admiram, que assinam embaixo de tudo o que ele escreve.
Acham pouco? Pois saibam que existem mais pais e mães escondendo até mesmo de si próprios que o filho é gay do que andorinhas no verão. Logo, não seria corajoso assumir isto assim, ao vivo, publicamente, nacionalmente e, mais importante do que tudo: tranquilamente? Eu acho que é. E digo mais: tenho certeza absoluta que mais da metade destes cães que agora ladram contra a atitude de Tas não teriam a mesma coragem que ele teve, caso estivessem em seu lugar, ocupando a sua posição. Lógico que isso devia ser comum, e dizer em rede nacional que sua filha é gay deveria ser tão sem sentido quanto dizer que sua filha é, sei lá, ruiva. MAS NÃO É ASSIM QUE É, BÊIBES. Para além dos barzinhos onde as pessoas alternativas-e-descoladas se reúnem para tomar cerveja e citar Rimbaud existe um mundo alienado, potencialmente perigoso, que não pode ser ignorado. Que não deve ser renegado nem mesmo desmerecido em sua importância. O preconceito existe, e muito, quer queiram, quer não queiram, e para ser eliminado precisa, antes de tudo, ser identificado.
Aliás. Aproveito para deixar aqui o link de um projeto muito legal chamado Sejamos Gays. A idéia é que cada pessoa envie para o e-mail projetoeusougay@gmail.com uma foto sua (“sozinho ou acompanhado da família, namorado, namorada, marido, mulher, amigo, amiga, presidente, presidenta”) com um cartaz, folha, post-it, o que for mais conveniente, com a seguinte mensagem estampada: #EUSOUGAY. O objetivo é usar estas imagens numa vídeo-montagem que será divulgada no YouTube. A idéia é, nada mais nada menos, do que manter este assunto em voga, mais ou menos como eu tentei fazer com a campanha Todos Contra o Crack!, pois, como já disse a Avon, é conversando que a gente se entende. Por isso e muito mais, apóio a iniciativa #EUSOUGAY, e em breve enviarei minha foto.
Também apóio o CQC, e achei a atitude do Tas bacana e corajosa. E, muito importante: apóio qualquer iniciativa que saia dos barzinhos alternativos-e-descolados, onde os cães politizadões ficam sentados a madrugada inteira acreditando que o mundo é um submarino amarelo, e vá para as ruas, alcançando o máximo possível de pessoas e esfregando em suas caras uma verdade que, apesar de discordamos, de repugnarmos, de abominarmos, existe, e precisa ter um fim.E este fim só acontecerá quando pararmos de agir baseados naquilo que deveria ser, e não naquilo que é.