A batata, o crack e a gente
Um grupo de comerciantes de um bairro de São Paulo se reuniu, tocou fogo em alguns pneus no meio de um cruzamento, e iniciou assim um protesto, pedindo que a polícia, o governo, Deus ou qualquer outra autoridade disponível desse um jeito na cambada de fumadores de pedra – chamados por eles de nóia, de paranóia – que vivem por ali e estão espantando a clientela da região.
As vendas caíram estrondosamente, as ruas vivem imundas, o comércio fecha mais cedo porque, a partir das cinco da tarde, os primeiros viciados começam a chegar.
E de manhã, ainda é preciso mandar embora os remanescentes.
Realmente, uma situação difícil.
A noite cai, a pequena fogueira acesa em protesto se apaga e todo mundo vai para suas casas.
Então eles voltam.
São 40, 50, talvez muito mais.
E todo dia o movimento é maior.
Uma viatura da polícia se aproxima, estaciona.
Os nóias vão saindo devagar.
Não fogem e não parecem assustados, muito menos apressados.
O policial caminha entre eles, chuta uma latinha, dá um suspiro e vai embora.
Sentindo-se frustrado, imagino eu.
E a pergunta que não quer calar é: o que fazer com os muitos viciados em crack, que definham e multiplicam-se Brasil afora?
Levar para a cadeia e colocar onde?
Tocá-los, como se toca cão sarnento também não resolve pois, como cães sarnentos, eles sempre voltam, e voltam, e voltam, e voltam, cada vez em número maior e mais estropiados.
Apenas com uma pequena diferença: eles não são cães sarnentos.
São pessoas.
A verdade, meus amigos, é que a famosa crackolândia dos anos 90, distante e improvável, quase irreal, ganhou filiais por todo o Brasil e, posso apostar, tem uma perto da sua casa.
E junto com ela aumentou também (e consideravelmente) o problema: o que fazer agora, meus caros, que a merda já bateu contra o ventilador?
Levante a mão quem tiver uma solução.
Não temos clínicas e muito menos cadeias para abrigar tanta gente.
Não temos hospitais, não temos profissionais disponíveis.
Não podemos varrê-los para debaixo do tapete e está cada vez mais difícil fingir que eles não existem.
É realmente uma pena que tenhamos deixado o fogo atingir o picadeiro, pois agora, apesar do meu absoluto otimismo (daqueles incorrigíveis) começo a pensar que perdemos o combate.
Batalha a batalha, cavamos nossa própria cova.
Ao contrário do que parece, não pretendo aqui alarmar nem deprimir ninguém.
Apenas acredito que já passou da hora das iniciativas saírem do papel e do trololó para a vida real, o dia-a-dia, o vamos-ver.
Campanhas de conscientização e prevenção são fundamentais.
Organizações e associações, imprescindíveis.
Mas a verdade única e incontestável é que precisamos investir, sim, na saúde.
Antes de qualquer outra coisa precisamos de dinheiro, de grana, de verba pública.
São mais de 60 mil usuários, só aqui no Rio Grande do Sul.
Número este que aumenta enquanto você lê este texto.
Precisamos de investimentos para criar vagas nas cadeias, nos hospitais, nas clínicas. Precisamos de médicos especializados, de psicólogos, psiquiatras e remédios, muitos remédios.
Até porque, está mais do que provado que ações de curto prazo simplesmente não resolvem a questão. Apenas a empurra com a barriga e logo tudo volta, pior do que estava antes.
Precisamos dar um jeito para ontem nesta problemática, que é minha, e é sua, e é de todos nós.
Trocar os usuários de crack de lugar é simplesmente passar a batata quente para outras mãos e, no círculo vicioso que se tornou o consumo da droga no Brasil, logo, logo a batata torna para o mesmo lugar de onde saiu.
Ainda mais quente.
Ainda mais perigosa.
Diretamente e de volta para suas mãos.
Acompanhe o vídeo do fotojornalista Daniel Marenco