Grito mítico ou uma inflexão

Grito mítico ou uma inflexão "pós"-moderna

Matéria • 12 de janeiro de 2011 • Franzé Matos

Parentes indesejados de uma idade média de fé e do fogo, filhos bastardos de uma modernidade que sonhava dominar pelo pensamento, somos hoje ocidentais bombardeados, alardeados pela dissonância colapsal deste mundo em mutabilidade incontrolável. Vagamos errantes à procura dos sentidos que nos prendam a vida, fazendo escolhas insólitas e não questionadas, apenas vividas. Nossos desejos mais perversos, nosso pensamento com uma ojeriza a tudo que é considerado sério e importante, transforma a busca do prazer e sua satisfação no motor de toda nossa era.

A busca e/ou questionamento pela verdade das coisas e seus sentidos recônditos parecem hoje poesias parnasianas ou objetos de uma arte déco rasteira, absolutamente estranhos a nossa realidade; pensamentos datados, expressões de uma outra estação, que já não precisamos nos preocupar em visitar. Prosseguimos cegos em meio à luz da vida, procurando faróis que não podem ser vistos, perdendo-nos entre o belo procurando o mistério que o faça durar para sempre, e, assim, caminhamos cheios de verdades faladas, achadas, comunicadas e instauradas como consensuais. Acreditamos estar no controle, mas somos apenas máquinas controladas. Homens-máquina programados axiologicamente (valores éticos) para conseguir viver sem se questionar muito sobre dada realidade opressora. Perspectiva? Há muito já não sabemos o que tal palavra significa. Vivemos um presente eterno e as conjecturas do agora parecem eternas demais, seguras demais, normais demais para exigir algum pensamento, já que hoje o pensar “cansa”.

Tornamo-nos bilhões de mundos incongruentes, certezas ambulantes, que a cada passo, respiração ou decepção, constroem mais uma barra, para a cela individual e incólume que pouco falta para finalizar. O projeto moderno é o nosso lema, vamos “desencantar” o mundo, nutrir, cada vez mais, a nossa sonhada liberdade individual e acariciar nosso filho mais querido, o nosso próprio ego. Temos profunda confiança no que sabemos, está tudo tão cristalino, para quê, então, escutar o outro? Tendo isso em mente conversamos apenas banalidades, amenidades e no máximo um algo sério altamente maquiado numa ironia fina, que tenta pinicar o outro, almejando que este perceba o quão errado está. Somos sacerdotes do individualismo e nossa bíblia são as linhas mal escritas dos nossos pré-conceitos.

É de impressionar o quanto evoluímos como “homens”, comemoremos, somos a maior praga que este planeta já viu. Nada escapa ao nosso desejo perverso de consumir e dominar. Tais movimentos se potencializam desde o momento que já não nos reconhecemos como semelhantes, mas como incongruências biologicamente, parecidas vivendo juntos. E essa condição é motor ideal para alimentar e retroalimentar a nossa maior verdade social, nossa maior fé: o capitalismo.

Existimos agarrados ao seio aconchegante de um sistema que nos promete a inexistência dos limites, a possibilidade de viver na verdade e a garantia individual de nossa liberdade. Não precisamos caçar para sobreviver, não precisamos procurar água para beber, não precisamos pensar seriamente para viver e já temos o completo poder para dominar. O mundo agora está erguido exclusivamente sobre verdades. E é nisso que acreditamos. Partimos, então, do imediato, do que aparece agora, admirando- nos com sua beleza cintilante e efêmera. O paradoxo é iminente, perpassa, ele, todo o campo de ação de nossas vidas. Nossa metanarrativa principal – capitalismo – soube como “ninguém” reconhecer e se fortalecer desta condição, cada vez mais, presente na natureza construída humana. “Ele” se tornou o maior efeito perceptivo da palavra metamorfose, nutrindo-se de tudo que antes seria contradição intransponível, transformando todo o diverso, todo o novo, toda ideologia em sua própria expressão atualizante. Normas, preceitos, verdades, tudo é relativizado ganhando sempre um ar poroso de inseriedade e datas marcadas para o definitivo sepultar.

Vivíamos “aprisionados” num local escuro da religião, mito e da fé, projetando o homem e sua personalidade nas figuras sobre-humanas dos deuses e mitos. Hoje não! Somos senhores do nosso próprio destino, adotamos o ceticismo como o principal modelo, somos adeptos dos dissecamentos, dilaceramentos de tudo que exista para que possamos compreender a plenitude de suas entranhas e daqui um pouco alcançar a luz do “desencantamento” pleno do mundo. Delegamos nosso pensamento aos que promovem pesquisas “sérias”, “imparciais” e objetivas, mediando nossas possibilidades de ser a partir disso. Escolhemos um viver não-posicionado, esperando, famintos, a chuva que fertiliza os campos, contentando-se com as migalhas lançadas ao vento, sem saber a quem agradecer a esmola.

Somos os filhos gloriosos da sociedade “pós-ideologias”, frutos concebidos da dominação do mundo e da possibilidade da descoberta das verdades pela objetividade. Matamos Deus e nos tornamos Ele próprio. Criamos o afã de tudo controlar, explicar e hierarquizar, pois só assim seríamos capazes de escapar ao medo da existência. “Tomamos” as rédeas do destino e nenhum pensamento de outro pode nos controlar. Só acreditamos naquilo que podemos verificar, mesmo que esta verificação não esteja em nossas mãos – e isto é o problema. Mal escapamos dos domínios que voltavam nossos olhos para outro mundo, buscando salvações no além vida, e novamente estamos presos às verdades criadas pela força bruta das convenções e equalizações entre os não conciliáveis.

A que preço dominamos o mundo? Ainda é possível chamar de mundo? Para escapar da angustia mítica da incerteza que nos divide a alma, percebemos a possibilidade de encontrar na perenidade dos números e fórmulas matemáticas a solução para geração e corrupção incontroláveis do mundo. Criamos leis, normas e parâmetros para o que sempre foi incontrolável, incontornável; a saber, o mistério da própria vida. Instauramos lunetas mágicas nos olhos, que agora enxergam os recônditos domínios do interior de tudo que existe. Metrificamos, experimentamos, observamos e assim temos a Fé de estarmos no caminho certo. Mansões, salões, estradas, tuneis, constroem-se arranha-céus e devastamos tudo para cada vez mais e mais construir/destruir. Bebemos o esgoto de nossa podridão, respiramos o pó negro de nossa condição e somos a verdadeira peste bíblica que a tudo extinguiu.

Mediamos nossas relações pela retirada de valor intrínseco dos objetos, mesmo que este objeto seja o teu semelhante. Retirando as particularidades da “coisa”, transformando-a num indeterminado, o processo de dominação pode se expandir até as estrelas que ainda nem nasceram. O opaco é agora nosso objeto de visão, só vemos formas, documentos, fatos e realidades definitivas, todas cobertas por um véu negro invisível, que mascara as vergonhas de ser o mais rancoroso ditador. Na condição absoluta de Ser, voltamo-nos para todo o resto com o desprezo latente que emana do cheiro putrefato de nossa sociedade, onde o outro é consumido pelo verme que devora seu sangue podre, e dando graças a “Deus” por estarmos numa situação diferente. Que deus perverso, não?

Marchando como massa para o abatedouro. Resta pouco para chegarmos lá! Temos ainda alguns lugares para dominar, desmatar e escravizar, mas nossa vitória (leia extinção do planeta – nossa casa?) está próxima e todos sabem disso, mas não é problema meu, nem seu, é nosso? Mas nosso não é meu? Não, acho que não. Acredito que não. Tenho fé que não. E sigo marchando acostumado já com a lama que sempre me esperou por viver entre as feras iguais a mim. Crio para matar, respiro para matar, vivo para matar, mas morro para deixar o próximo viver?

Relativizamos tudo, menos a certeza do nosso caminho de superioridade, nossa auto-reflexão esbarra nas barreiras das vicissitudes e labirintos criados. Já não contemplamos ou pensamos em nada do que somos, mas apenas nos efeitos ocasionais da falta de correção de nosso ego. Somos em um mundo, precisamos dele para ser, e conhecer o mundo não é se reconhecer? Prosseguimos de mãos dadas para o abismo, conduzidos pelos desejos pulsionais centralizados no cerne de um sistema (coordenado por poderes indeterminados) que nos coordena, vivendo uma tão sonhada vida de marionetes.

E, apesar de tudo, ainda é possível escapar. Como tudo isso foi construído, cada tijolo pode ser passo-a-passo esfarelado, envergando as colunas, enfraquecendo as estruturas do individualismo bastardo de quem somos gêmeos univitelinos. Já não adianta esperar a grande revolução ou o momento que reconhecerás como o ponto de mudança onde você também marchará, agora é o momento e não custa a passar. Levanta-te homem, torna a ser Natureza!