100 anos do Eu (ou Augusto dando emoção à pedra)
“Vista de luto o Universo E Deus se enlute
no Céu!Mais um poeta que morreu, Mais
um coveiro do Verso!”
Augusto dos Anjos. “Barcarola”
Há cem anos debatia-se entre a satisfação, a angústia e uma teia de desventuras o poeta Augusto dos Anjos. Era o momento de presentear o mundo com uma estrondosa bofetada estética: a obra EU – publicada as suas expensas e em parceria com Odilon dos Anjos, seu irmão. Foram 1.000 exemplares. A segunda edição só veio a público em 1928 (reedição póstuma, diga-se).
Se 1912 foi um ano contraditório para Augusto dos Anjos, 2012 pode ser ainda pior: paira a ameaça da pá de cal lançada por uma vertente da crítica literária que ainda precisa se nutrir para atingir a magnitude do EU. Para não incorrer nesse erro inicio a minha contribuição à Revista Zena com uma série de três textos sobre a obra de Augusto, para que o céu se converta numa “epiderme cheia de sarampos” e sejam demolidas as possibilidades de inércia diante desse universo. Se é para “desafinar o coro dos contentes”, como diz Torquato Neto, cá estamos.
Com a publicação do EU, ao ser oficialmente lançado no mundo das letras, em apenas um mês o nome de Augusto dos Anjos figurou nos principais periódicos cariocas. Se isso não significou o reconhecimento imediato do valor estético da sua obra, ao menos permite a visualização dos incômodos provocados. É certo que muitos dos poemas do EU já haviam sido publicados em jornais de João Pessoa, do Recife e Rio de Janeiro; essa circulação motivou a crítica a se manifestar por meio da imprensa.
Seis meses antes de lançar o EU, em sua estréia no Jornal O Estado (Rio de Janeiro), Augusto publicou um texto (carta) em tom de amargo desabafo. Dialogando com um interlocutor fictício, o poeta ironiza: “aqui o processo de emocionar ou de impressionar o público já é uma instituição veterana, com um número fixo de estatutos, sabiamente irrevogáveis”. Numa crítica audaz Augusto ainda disparou contra o recurso da “vassalagem inteligente” e advertiu o interlocutor a não alterar “o bem-estar sintomático que reina endemicamente no fervedouro quotidiano de nossa literatura”, sob pena de sofrer “justíssima obliteração no inventário rigoroso das letras pátrias”. O poeta, incisivo, apontou o destino dos que desafiam esse bem-estar: gozar “a importância astronômica de um satélite morto, a rolar, sem funções próprias, na dinâmica formidável do espaço”.
Se é verdade que Augusto optou pela “insistência em certos assuntos que perdem o condão de agradar” (crítica de Hermes Fontes no Diário de Noticias, em julho de 1912), eu vejo nisso o seu grande mérito. Esse poeta não foi uma aberração, um caso patológico e sua obra não é uma impressionante exceção no plácido panorama da Literatura Brasileira. Negar o EU por vezes se relaciona com o entendimento de que a angústia representada por essa poética tem a ver com um malogro individual. Cabe questionar: até onde esse reducionismo pode ser sustentado?
É preciso reconhecer: o EU veio para demolir modelos, seja no plano estético ou social. Nega um modelo secular que reflete no imaginário ocidental: a aproximação entre estética literária, padrões de linguagem, perfeição da forma, conteúdo lírico e imagens equilibrantes – modelo assimilado por autores brasileiros, como os árcades, românticos e parnasianos. Augusto dos Anjos despontou nesse cenário demolindo o que se aceitava como poético e, a partir daí, recompôs destroços e inaugurou uma poesia com elementos de choque. Isso não lhe pareceu ser o bastante, pois, a golpes de martelo, a sua obra aniquila a pureza e a possibilidade de se viver imune às constantes formas de degradação.
A poética de Augusto também desafiou a noção de progresso festejada pelas elites do entre-séculos XIX e XX. Por ser um observador agudo, o poeta representa a podridão social em detalhes, percorrendo os recônditos errôneos habitados por seres microscópicos. Há uma identificação com seres que estacionaram no primeiro estágio do desenvolvimento e se revoltam diante de tal condição, promovendo, a partir de galerias subterrâneas, a construção da ruína – espécie de ajuste de contas. Daí a imagem da cidade que vai sendo tomada nas entranhas pelos agentes da destruição.
No EU são percebidos os limites da aceitação, a tomada de consciência e a revolta relacionados com a morte. Nele está o homem que “desaprendeu a esperança”, o que faz da obra um desabafo trágico. “Trata-se de morrer irreconciliado e não de bom grado”, como afirma Albert Camus em O Mito de Sísifo. O poeta se insere numa luta constante marcada pela angústia: a falência do verbo, pois nem sempre a linguagem conseguirá representar os horrores da realidade.
Aqui lembro de Nietzsche (Além do bem e do mal): “De quantos séculos precisa um espírito para ser compreendido?”. Ou ainda (A gaia ciência): “homens de bem de todos os tempos são aqueles que plantam profundamente velhas idéias a fim de fazê-las frutificar, esses são os cultivadores do espírito. Mas todo terreno acaba por se esgotar, é preciso que o arado do mal o revolva”. A poética de Augusto é o “arado do mal” que ainda revolve o terreno da Literatura Brasileira.
Seis meses antes de lançar o EU, em sua estréia no Jornal O Estado (Rio de Janeiro), Augusto publicou um texto (carta) em tom de amargo desabafo. Dialogando com um interlocutor fictício, o poeta ironiza: “aqui o processo de emocionar ou de impressionar o público já é uma instituição veterana, com um número fixo de estatutos, sabiamente irrevogáveis”. Numa crítica audaz Augusto ainda disparou contra o recurso da “vassalagem inteligente” e advertiu o interlocutor a não alterar “o bem-estar sintomático que reina endemicamente no fervedouro quotidiano de nossa literatura”, sob pena de sofrer “justíssima obliteração no inventário rigoroso das letras pátrias”. O poeta, incisivo, apontou o destino dos que desafiam esse bem-estar: gozar “a importância astronômica de um satélite morto, a rolar, sem funções próprias, na dinâmica formidável do espaço”.
Não há comparação para essa vivência arrebatadora: voltar para casa, na quarta-feira de cinzas, depois da apoteose no Marco Zero (em Recife), e encontrar, de um lado, Augusto dos Anjos atônito e eternizado no monumento criado por Demétrio Albuquerque; do outro, um espantoso baobá em estado de florescimento. A Praça da República transformada e transformando os raros transeuntes que se dão a tal deleite… Imediatamente lembro desses versos, retirados de Os doentes: “Quando eu for misturar-me com as violetas, / Minha lira, maior que a Bíblia e a Fedra, / Reviverá, dando emoção à pedra, / Na acústica de todos os planetas!”. Definitivamente Augusto é um “poeta visceralmente original”, como bem observa o crítico Alexei Bueno.