Fogo, pedra e fumaça
O sol castigava o juízo e o sinal não precisava estar fechado, mas estava. A viatura à frente fora sorteada com o último instante do amarelo. O vermelho era nosso: eu, na bicicleta, junto à calçada; ele, um rapazote num importado cinzento, na faixa de velocidade.
O bólido era um forno e o jovem parecia pedir ajuda com o corpo quase pra fora. Preferiu a brisa ao ar condicionado – ou este estava quebrado, ou havia pouca gasolina, ou queria a fresca ou qualquer coisa jamais sabida. Pelos hormônios em seu corpo e fogo que o sol instigava, parecia querer mais potência do motor – feito rosnar tipo bicho incomodado pela prisão semafórica.
Os próximos quinze segundos formam uma tatuagem na minha memória. Pivete na essência do termo, uma criança vem da calçada pra faixa. Passa por mim nervoso, fissurado, sequer me percebe. Entretanto, percebo seu olhar vidrado e o revólver brutal pra sua mão franzina e trêmula. Antes de cruzar por completo o importado, também o motorista percebe o assalto premente.
Arranca quase por sobre o pequeno nóia. Com agilidade de bicho de rua, o trombadinha livra o corpo e faz o que faria caso algo desse errado. Com o estampido, o carro descontrolado bate no sinal ainda fechado. Em volta, meia dúzia de vidas para chocada, enquanto o menino vasculha o outro ensanguentado, pra não perder a viagem.
Levou qualquer coisa, pra transformar em pedra e depois fumaça – como sua própria vida e a do semelhante morto no carro importado.