Uma Margarida faz revolução - Dona Margarina (Foto: Belisa Parente)
Dona Margarina (Foto: Belisa Parente)

Uma Margarida faz revolução

Matéria • 14 de novembro de 2012 • Belisa Parente

Os poderosos podem matar uma rosa, duas, até três rosas, mas jamais deterão a primavera Che Guevara

A primavera para ela chegou em 1937, quando Getúlio Vargas desencadeou o golpe de estado, implantando o “Estado Novo”, regime ditatorial e autoritário que fez com que civis como Manoel Sebastião da Silva se engajassem na luta armada. Margarida Oliveira da Silva perdeu o pai nesse mesmo ano, ela tinha apenas cinco anos de idade, mas ainda recorda o vestido que “mal tirava do couro” feito com as sobras do tecido da camisa dele – ela conta que o trabalho de Manoel Sebastião na Revolução de 30 era sabotar os carros dos inimigos do Estado, conhecidos como “perigo vermelho”, os comunistas. “Meu pai ia lá, em surdina, e afrouxava os parafusos das rodas dos carros para que eles não atravessassem a ponte que dava na cidade”, fala meio a sorrisos.

Os direitos constitucionais estavam suspensos desde a Intentona Comunista de 1935, não existiam leis trabalhistas – essa só entrou em vigor em 1943 – que amparassem Margarida, sua mãe e mais dois irmãos. A família começava a passar necessidades quando Tereza Tavares da Silva resolveu procurar sua mãe, a avó de Margarida. “Nós fomos para Palmares atrás da minha avó, ela foi para lá e não voltou mais”, diz. É a partir daí que começa a saga de uma menina do interior de Alagoas que se tornaria um exemplo de luta, força, coragem e fé para os que a conhecem. “Foi a viagem mais longa da minha vida, só Deus sabe o que nós passamos”, afirma.

Margarida, a mãe e os dois irmãos fizeram boa parte do percurso a pé. Caminharam de União dos Palmares-AL Palmares, Alagoas, até a divisa do Estado de Alagoas com Pernambuco, no “encontro das águas”, daí pegaram um trem e, enfim, chegaram em Palmares, já em Pernambuco. Lá, com seis anos, Margarida passou um longo tempo ajudando a mãe na fabricação de tijolos, esse era o único sustento que a família tinha. “Lembro, eu pequena colocando o barro na forma e depois levando ao fogo, teve um dia que minhas mãos sangraram de tanto maçar os tijolos, já sofri muito nessa vida”, conta. Depois vendeu cachorro-quente na porta do mercado e laranjas na estação do trem, tudo isso para ajudar a mãe. “Uma vez subi no trem pra vender as laranjas e quando menos espero, ele começou a andar, corri pra porta, e me joguei, me relei todinha, mas hoje estou aqui contando a história”, lembra.

Seis anos depois, agora com doze anos de idade, Margarida consegue um emprego na fábrica de tecidos Amalita e muda-se para o Recife. Mas foi em 1958 que o espírito revolucionário fez-se visivelmente presente, uma nova luta começava, agora em favor da classe trabalhadora de Pernambuco. Ela e os seus companheiros reivindicavam aumento salarial de 20%, mas o dono da fábrica não queria acordo, foi quando os operários entraram em greve. “Greve é a última arma que o trabalhador tem quando não chega o diálogo, o entendimento com o patrão”, diz.

Depois de 49 dias de greve os trabalhadores resolveram fazer um piquete próximo à fábrica, na Praça Sérgio Loreto, localizada entre a Rua Imperial e a Avenida Sul, no bairro de São José. Alguns operários mais revoltados fizeram um coquetel com soda cáustica e jogaram nos funcionários mais antigos que furavam a greve, e nos novos contratados. Foi quando a tropa de choque interveio e machucou muita gente. “Os furões passavam nos carros de barriga cheia, mangando da gente, enquanto nós passávamos fome em prol de todos, da classe inteira, eles só pensavam neles. Sempre fui solidária aos meus companheiros”, afirma.

Nessa época Margarida já era mãe de sete filhos legítimos e quatro adotados, e um desses foi achado em uma caixa de sapato. Parece mentira, principalmente no mundo capitalista e individualista em que vivemos, mas não é. “Sofri muito, porque 49 dias de greve pra quem tem uma família grande é difícil… Eu sustentava catorze pessoas e a maioria eram crianças”, conta. Margarida foi presa no dia do piquete, no coreto da praça, porque ela significava a voz dos operários oprimidos, mas dias depois foi liberada por não haver provas que a incriminasse. “Eu era uma trabalhadora, queria um salário conforme o merecido, como Jesus disse: “Dá a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César”. E eu disse lá, só quero o de Deus, o de César pode ficar, mas eles só queriam nos explorar”, diz.

Na madrugada do dia 31 de março de 1964, um golpe militar foi deflagrado contra o governo legalmente constituído de João Goulart. A falta de reação do governo e dos grupos que lhe davam apoio foi notável. Não se conseguiu articular os militares legalistas. Também fracassou uma greve geral proposta pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) em apoio ao governo. Nos primeiros dias após o golpe, uma violenta repressão atingiu os setores politicamente mais mobilizados à esquerda no espectro político, como a União Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas e grupos católicos como a Juventude Universitária Católica (JUC), a Ação Popular (AP) e Ação Católica Operária da qual Margarida fazia parte. “A gente discutia a situação do país, a situação do trabalhador dentro do plano de Deus”, comenta. Milhares de pessoas foram presas de modo irregular, e a ocorrência de casos de tortura foi comum, especialmente no Nordeste.

O líder comunista Gregório Bezerra, por exemplo, foi amarrado e arrastado pelas ruas de Recife. Milhares de pessoas foram atingidas em seus direitos. Parlamentares tiveram seus mandatos cassados, cidadãos tiveram seus direitos políticos suspensos e funcionários públicos civis e militares foram demitidos ou aposentados. Entre os cassados, encontravam-se personagens que ocuparam posições de destaque na vida política nacional, como João Goulart, Jânio Quadros, Leonel Brizola, Luís Carlos Prestes e Miguel Arraes. “Nós paramos a fábrica em solidariedade a Miguel Arraes, as forças armadas cercaram o Palácio da Justiça, desde o Parque Treze de Maio. Um grupo de estudantes ainda conseguiu chegar ao Palácio, e um deles foi morto lá na frente”, afirma. O presidente do Sindicato dos Tecelões de Pernambuco, Amaro, sumiu nesse mesmo dia e nunca mais apareceu, muitos companheiros de Margarida foram presos no sindicato, arrastados e torturados, mas a sua vez só chegaria um ano depois.

Depois dessa crise toda, Margarida foi transferida da fábrica Amalita para a Macaxeira, do mesmo dono. As perseguições continuariam até o dia 8 de setembro de 1965, quando ela foi presa, humilhada, e acusada de subversiva pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS). “Na repressão, quando você reclama um direito chamam você de subversiva, foi isso, levei o nome de subversiva, mas eles nunca provaram… Fui presa, fiquei com vergonha, mas meu grupo de amigos da Ação Católica me ajudaram, o povo de Dom Hélder também”, comenta.

Dona Margarida foi presa por lutar pelos seus ideais, mas sua luta de vida não se encerrou por aí, essa flor de mulher mesmo depois de 76 primaveras ainda não murchou, continua trabalhando na Rua do Lazer, ao lado da Faculdade Católica de Pernambuco. Logo após o golpe ela abriu um modesto fiteiro e há 45 anos passa seus dias vendendo livros, cartões telefônicos, chocolates, para sustentar-se e ajudar os filhos e netos que necessitam. Dona Margarida, com certeza, contribui com a evolução intelectual e política de muitos alunos que se encostam por lá para receber aulas de história, de vida, da revolução operária em Pernambuco. Como disse Bertold Brecht, “Há homens que lutam um dia, e são bons; Há outros que lutam um ano, e são melhores; Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons; Porém há os que lutam toda a vida. Esses são imprescindíveis”.