O submundo encantador de Zizo
Fui assistir a Febre do Rato, novo filme de Cláudio Assis, com expectativas. Havia gostado do enredo e da equipe. O Cine São Luiz estava lindo e lotado. Entro e dou de cara com os queridos poetas marginais Lara e Valmir Jordão. Cadê, Miró? – pergunto. Outro membro da trupe da pesada. A mesa estava posta para Zizo e os recifenses undergrounds, literalmente, pois a história do filme acontece no Recife.
Zizo, interpretado eximiamente por Irandhir Santos, ganhador do prêmio de melhor ator de ficção no** Festival de Cinema de Paulínia** (SP), é um poeta marginal que presenteia amigos com versos, escreve poesias no corpo, vive a vida com entusiasmo e ideais humanistas. Assim, lança uma fanzine intitulada Febre do Rato. O poeta, como é chamado no filme pelos amigos, é um revoltado com causa, sem perder a doçura sensibilíssima da poesia.
Um daltônico pode enxergar cores diversas através da energia do outro, das coisas. O filme em preto e branco parece colorido. A fotografia do longa, assinada por Walter Carvalho, é belíssima. O fotógrafo se emocionou ao ver o trabalho ser exibido no São Luiz da sua adolescência. Conheço alguns Zizos no Recife, Jomard Muniz de Brito, por exemplo, para a nossa sorte, imprime suas crônicas e as distribui nas suas andadas. O poeta Miró chegou a recitar “A bicicleta de Belinha” para o filme, mas, infelizmente, a gravação ficou de fora.
Lembrei da fanzine beatnik EgoTrupe de 2003, de presenciar banhos embriagados no Capibaribe, das palafitas que construíamos na infância para os trabalhos da escola. Josué de Castro! – grita o Poeta. “Chico Science, me dá atua ciência”, clama Zizo ao céu. Ao céu? Não, porque no céu é tudo muito calminho… O ator Juliano Cazarré conta a piada ‘cronicada’ envolvendo o Recife com desenvoltura, no papel de um traficante amigo.
Matheus Nachtergaele interpreta um coveiro que trabalha no maior cemitério da cidade, construído em 1851. O Cemitério de Santo Amaro foi palco de uma juventude transviada e abriga túmulos muito visitados, como o de Joaquim Nabuco e o da Menina-sem-Nome. Na lápide da enigmática criança, existe a inscrição: “Sofrestes na terra, mas por prêmio ganhastes o céu”. Belo cenário o Cemitério do Bom Jesus da Redenção de Santo Amaro das Salinas, no centro do Recife; ao redor encontramos lindos azulejos portugueses com santos e florais desenhados.
O roteiro de Hilton Lacerda é envolvente, as poesias são o ponto alto do filme. As sacadas são ótimas, as associações literárias, como Eneida, par romântico do poeta interpretado por Nanda Costa. “O filme foi inspirado na convivência com acidade, com Hilton, Xico Sá… É uma revolução e fala das nossas próprias vidas”, afirma o diretor sobre o “submundo” recifense.
No Festival de Paulínia (SP), quando o filme estreou em julho de 2011, ganhou oito prêmios. A segunda exibição foi na terrinha, na IV Janela Internacional de Cinema do Recife, onde a equipe e os amigos se divertiram aos montes. Cláudio Assis, diretor de Amarelo Manga (2002) e Baixio das Bestas (2006), mordeu, sorriu, dançou em cima da Variant azul estacionada na frente do Cine São Luiz. Parecia mesmo “o cão sem plumas” de João Cabral de Melo Neto.
A expressão Febre do Rato, no Recife, é usada em contextos diversos. As possibilidades da língua no roteiro foram bem exploradas. O coloquial ‘entendesse’ e ‘visse’ recifense são retratados sem clichês. O dito pode ser atribuído às pessoas endiabradas, loucas ou que tenham adquirido peste bubônica antes e depois da enchente de 75. Diante de tantos acertos, comentar pequenos erros é mesquinho, e esta crônica jamais esgotará o filme. A trilha de Junio Barreto no longa…
Em Capitães de Areia, – o livro foi adaptado recentemente por Cecília Amado para o cinema, Jorge Amado afirma que os meninos maltratados do enredo eram os verdadeiros donos da cidade, pois a conheciam e amavam totalmente, eram os seus verdadeiros poetas. Na visão do escritor e pensador, o poeta é o maior amante e o maior conhecedor do espaço urbano. Mas ratos tomam conta da cidade e corroem corações quando liberdade e direitos são asfixiados.
Poesia recitada no filme por Zizo (publicada pela primeira vez na Revista Zena):
“Valetes a varejo”.
Assim, só sendo assim, posso falar Das espadas que são nós. Nós que se enrolam e se vertem De forma tão infinita que nem a lâmina (fina e precisa) Consegue desfazer A corda atada a nós.
Nem as espadas outras, Mesmo que pareçam singelas, Tem o poder de ferir e inferir. Mesmo que seja fundo o corte E mesmo que seja fácil, O tempo todo nós: Ali, Acima, abaixo.
Superfície e espelho de nós, Que nada parece mudar e desfazer. E quando o tempo deixar nós cegos Vamos à beira do rio (espelho ruminante da cidade) Pensar em desatar. …será tarde.
E no fluxo rio das idéias Nós vão indo, afeitos, refeitos, rarefeitos… E lá vão eles juntos. Afoitos se completam… Eles nós. Cheios de nós. Reinventam-se a cada dique: açudes. E rompem Sobre nós, sob nós, sobre nós.
O filme pode ser visto nos cinemas:
Cinema da Fundação
16h50 (sáb, qui); 18h40 (sex, dom, ter, qua); 20h20 (exc seg)
R$ 8 e R$ 4 (meia)
Terças: R$ 4 para todos
Shopping Center Recife
Seg, ter, qui: R$ 15 e R$ 7,50 (meia)
Quarta-feira: R$ 11 e R$ 5,50 (meia)
Sex, sab, dom e feriado: R$ 19 e R$ 9,50 (meia)
Sessão família: sab, dom e feriado (sessões iniciadas até as 14h55): R$ 14 e R$ 7 (meia)
Sala 3D: seg, ter, qui: R$ 22 | sex, sab, dom, feriado: R$ 24 | qua: R$ 20
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