O olhar humanista de Abelardo da Hora
Abelardo Germano da Hora nasceu em 31 de julho de 1924, na Usina Tiúma, em São Lourenço da Mata. Sua obra é marcada por denúncias sociais e pelo lirismo, representado inconfundivelmente nas esculturas de corpos femininos. Bundas, peitos, cinturas de pilão. Abelardo carrega a genialidade e simplicidade dos grandes artistas humanistas, é terno com alma vivaz – o que o faz continuar criando com a atitude de um bom mestre.
Diferente dos obstinados, que lutam para ter sucesso profissional ou até descobrir se tem dom pra coisa, a descoberta de Abelardo foi acidental. Ele se inscreveu no Colégio Industrial Prof. Agamenon Magalhães no curso de mecânica. “Eu queria ser engenheiro mecânico e o meu irmão, não sei por que cargas d’água, queria ser escultor. Mas quando eu fui me inscrever não tinha vaga. Eu disse: bem, já que não tem mais vaga, me inscrevo em Artes Decorativas por quê pelo menos tenho um amigo, que é meu irmão”. Surpreendentemente, para o próprio e toda a família, ele se destacou como o melhor aluno da classe.
O professor de Abelardo no Colégio Industrial era Edson de Figueiredo, que tinha um problema auditivo. Álvaro Amorim, seu professor de pintura, brincou com Edson: “Venha cá seu moco, venha ver o que é um escultor!”, lembrou Abelardo entre risos. Ele fez três anos de escultura lá. Depois ganhou uma bolsa de Álvaro para a Escola de Belas Artes e logo foi eleito presidente do diretório. A primeira iniciativa do estudante foi criar excursões. Queria que todos desenhassem, pintassem e esculpissem ao ar livre, observando as pessoas na rua, inspirando-se na vida do lado de fora, ao invés de olhar para o próprio umbigo.
Em uma dessas excursões, já no fim do curso, em outubro de 1941, foram para Usina São João da Vara, onde seu pai havia trabalhado. A turma criava na beira do açude quando o dono da usina, Ricardo Brennand, parou em um carro importado e desceu para conversar com os jovens artistas. Abelardo estava desenhando o perfil de uma colega, Cremilda, que segundo o mesmo era muito bonita e ele costumava se enxerir. Quando o desenho estava quase pronto, Ricardo se aproximou e perguntou se já estava vendido; o jovem assinou a tela e presenteou o empresário. Em seguida, Ricardo o convidou para trabalhar com cerâmica artística. Menos de um ano depois, Abelardo estava na oficina com um oleiro à disposição, torno, forno e tudo quanto era necessário. Lá desenvolveu traços finos, em pratos com detalhes em relevos e pinturas. Os temas eram, geralmente, florais e elementos da cultura popular nordestina. Trabalhou também com terracota, técnica chinesa milenar usada para fazer bonecos, pratos, vasos, objetos duradores.
A primeira exposição de Abelardo foi expressionista, dedicada ao povo. Depois passou a criar inspirado na cultura popular. Nessa época, produziu as danças brasileiras, o carnaval, o frevo e a capoeira. Por fim, percebeu que a mulher era realmente a grande maravilha criada pela natureza, sem a qual não podia viver, dedicando grande parte da sua obra às mulheres. Abelardo capta o molde do corpo da filha, uma cintura que escapole na esquina, um olhar apreensivo ou irmão.
“Sou um grande amigo das mulheres, sou encantado, arriado pelas mulheres”.
Em 1948, junto com Hélio Feijó e outros, fundou a Sociedade de Arte Moderna do Recife, com a ajuda de amigos e do diretor do Liceu de Artes e Ofício, que os cedeu uma sala. “O clima era o melhor possível. Formei uma geração de artistas, hoje, reconhecidos. Implantei também um curso de música e um setor de teatro dirigido por Luís Mendonça. Depois disso, recebemos uma ajuda, porque até então eu ensinava de graça e ainda tirava dinheiro do meu bolso para ajudar a pagar o aluguel do atelier”, lembra Abelardo.
A criação artística em Abelardo vem naturalmente. Geralmente ele faz um desenho ou uma maquete pequena para depois ampliar. Segundo o mesmo, sua arte responde a uma necessidade vital. “Vejo coisas com o que me identifico ou me revolto, e tudo isso sai na minha arte. Atualmente, como estou amando demais, estou achando que as mulheres ficam cada vez mais bonitas, minha necessidade vital é o amor. É maravilhoso cantar as mulheres mais do que nunca. E a minha querida mulher, Margarida, nos casamos em 1948”.
“Minha necessidade vital é o amor”.
Questionado sobre a juventude, Abelardo disparada com a afirmação de que há um grave problema na orientação familiar contemporânea. “No campo profissional houve avanços. Mas na familiar, na questão da convivência, do respeito social, o negócio caiu bastante”, comenta. Apesar de acreditar que o consumo de droga tem infelicitado a juventude, principalmente pela falta de respeito à comunidade social, o artista é a favor da legalização das drogas. “No Rio e São Paulo você pode levar um tiro na cabeça sem ter feito nada, simplesmente por que os bandidos estão disputando o ponto de venda de drogas. Todo mundo deveria comprar drogas em qualquer parte, num instante a coisa acabava. Quando eu era menino vi muita briga por causa da proibição de bebidas alcoólicas, e depois que liberou acabou”, ratificou.
Entre as suas peças espalhadas pelo Recife, podemos encontrar o Vendedor de Caldo de Cana no Parque 13 de Maio. Mulher deitada, no Shopping Center Recife. O Sertanejo, na Praça Euclides da Cunha. O Vendedor de Pirulitos, no Horto Dois Irmãos. Monumento à Restauração Pernambucana, próximo à Praça Sérgio Loreto – palco de muitas revoluções.
Apaixonei-me por Abelardo sem saber, ainda na infância. Passava horas deslizando minhas mãos sobre os cabelos, seios pontudos, olhos grandes puxados, pescoços alongados das suas mulheres de pedra. As tinha intimamente, como um parente que gostamos de encontrar. Amava abraçá-las forte, como para testar nossas forças. Imaginava meu próprio corpo na maturidade. Abelardo, com seu humanismo genuíno, adentrou profunda e irreversivelmente no meu imaginário infantil. Como é bom tê-lo, vê-lo, tomar um café e conversar sobre as coisas do mundo. Viva Abelardo da Hora, o meu Klimt recifense.