O meu carnaval
A Festa da Lavadeira é o maior encontro de cultura popular, genuína, do Nordeste. É o palco onde nossas raízes culturais são louvadas. Com um público médio de 60 mil pessoas, a festa acontece no Dia do Trabalhador, 1º de Maio, na Praia do Paiva. Este ano, o homenageado é Raminho de Oxossi, um babalorixá do Terreiro de Oxum Opará, criador do primeiro afoxé em Pernambuco: Ilê de Africa, em 1975.
A história dessa festa teve início em 1987, quando Eduardo Melo, idealizador do evento, comprou a escultura de uma ‘Lavadeira’ do artista plástico Ronaldo Câmara e a levou para sua casa na Praia do Paiva, Município de Cabo de Santo Agostinho, a 40 km do Recife. No início, os participantes da Festa eram apenas os amigos de Eduardo, depois, a comunidade acolheu a festa, pessoas desconhecidas foram aparecendo, o público cresceu. “Então pensei, agora que a festa não é só mais dos amigos, é uma festa pública, uma festa que começa a se tornar popular, preciso me preocupar com a estrutura para receber essas pessoas”, comentou Eduardo.
Em 1996, a festa ganhou seu primeiro palco. De acordo com a Coordenadora do Centro de Estudos Folclóricos da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Rúbia Lóssio, a população se sente prestigiadas quando se vê no palco. Desde então, começou o processo de profissionalização do evento, que segundo Eduardo foi “gradual e harmônico”. Hoje a festa conta com uma superestrutura de quatro palcos, UTI Móvel, dois ambulatórios, apoio do Corpo de Bombeiros, Polícia Militar, de trânsito, Rodoviária, além da guarda civil do Município do Cabo.
Encantou-me de cara a comunhão ali presente. Seja entre o público, artistas, nativos, a festa “profana” de uma maneira geral com o espiritual presente e louvado – no dia 02 de maio acontece “oficialmente” a festa religiosa, com oferendas para Iemanjá. Eduardo Melo um dia me disse, na véspera da Festa: “Vamos ter luta santa e guerra boa na terra”. No ar e no mar, complemento. E a chuva que sempre cai é só mais uma constatação do espírito da Lavadeira, que lava até os mais terríveis sonhos e estigmas. A relação mítica que os moradores mantêm com a escultura da Lavadeira prova que os mitos e as lendas continuam presentes no imaginário popular – a Festa também é resistência cultural. A Lavadeira é concebida como uma MULHER para os nativos. Eles afirmam que a imagem os segue com os olhos e exala um perfume diferente. E lhe oferecem mangas, cocos, cajus, estrelas do mar, flores. A imagem da Lavadeira passou a ser tida pelos moradores da Praia do Paiva como uma representação de Iemanjá, construindo, assim, uma relação espiritual com a mesma.
No imaginário popular da comunidade sobrevivem histórias de Comadre Fulozinha, a mulher de branco, o curupira, a árvore mal assombrada. “O povo inventa e reinventa maneiras para sobreviver. E os mitos e as lendas tentam compor uma ordem social para o local. É muito importante existir mitos e lendas porque eles dão uma alma ao lugar”, afirma Rúbia Lóssio no documentário ‘Sou do Povo, sou da Festa’. Interessante essa forma de resistência ao lado de uma metrópole como o Recife, como os quilombos foram. Mas quem comprova que as histórias dos moradores, muitos pescadores, são apenas mitos ou lendas? Já que estamos falando de cultura popular, vamos lembrar um ditado popular: “Toda história tem um fundo de verdade”. Sem o pragmatismo de Peirce, algumas coisas simplesmente não conseguem se encaixar em fórmulas, estão além.
Entre os inúmeros artistas presentes no evento, representantes ilustres como Mestre Salustiano, Lia de Itamaracá, Selma do Coco, Nação Porto Rico, Tambor de Crioula, Coco Zambeira, Mazuca da Quixaba, Mestre Galo Preto, Samba de Véio. Em cada edição, são convidados cerca de 50 grupos, em média dois mil artistas populares se apresentam nos quarto palcos do evento. Além de tudo, o evento proporciona, em toda sua multiculturalidade, um verdadeiro show expressões corporais, seja do público ou dos artistas que se apresentam. De repente surgem rodas de capoeiras e cirandas, seres de outros planetas tal qual Chico Science & Nação Zumbi brincando na lama medicinal, personagens humorísticos vestidos de lavadeira, bonecos gigantes.
Comentário de uma integrante da comunidade da Festa no Orkut, em tópico que questionava: “O que foi a Lavadeira 2006? Se prenunciem…”: (sic) “LAVAGEM DA ALMA. Não teve um só ser (rico ou pobre) que não estivesse sujo de lama. Um verdadeiro Woodstock do Brasil. Uma verdadeira união entre pessoas comuns num só objetivo – curtir o dia inteiro sem se importar se estava melado ou não. Sem essas babaquices de retocar a maquiagem ou combinação de roupas e exibição de bens. Essa festa é o máximo. É realmente terapêutica”, disse.
Em 2005, a Festa da Lavadeira ganhou apoio das leis de incentivo à cultura do Estado de Pernambuco e disparou em quantidade de público e atrações. Nesse mesmo ano, a festa entrou para o calendário de turismo do Estado e foi convidada a se retirar da Praia do Paiva pelo grupo ‘Reserva do Paiva’ – projeto de um residencial de luxo da Odebrecht Realizações Imobiliárias Ltda. Neste ano, 2010, Eduardo Melo precisou recorreu ao Ministério Público do Estado, Delegacia e Ministério Público Federal, para que a festa pudesse acontecer no seu lugar de origem – a área da Festa havia sido cercada. Ano passado a ‘Reserva do Paiva’ divulgou uma nota dizendo que a proposta de realocação da festa visa melhorar o acesso e a circulação do público. Um discurso de desenvolvimento sustentável vem acometendo a especulação imobiliária. Querem segregar nossas praias, torná-las privadas? Mainha já dizia: “Como pode meu Deus, algo tão maravilhoso ainda ser público?! Só Deus!”. Daqui a pouco tentam vender um braço de mar.
A Festa da Lavadeira é o meu carnaval e ao mesmo tempo o meu encontro espiritual. Não é por acaso que a festa brotou no ano e mês em que nasci. Imagine quantas histórias e grupos passaram pela Praia do Paiva. Quanta vida e deslumbramento a céu aberto, ao lado de um imenso coqueiral e com uma praia maravilhosa na frente. Com um público de diversas cores e crenças, mas todos com o mesmo intuito, ser feliz, consumindo o melhor da música popular ancestral nordestina. Sérgio Siqueira, gerente de Criação e Produção da Rede Bahia, no documentário ‘Sou do Povo, Sou da Festa’, lembrou: “Gilberto Gil disse uma coisa bastante interessante… Que a vanguarda, o moderno, bebe na fonte da cultura popular. Bebe na raiz. Se você não tiver essa raiz forte, o que vem depois não vai ser forte”. Fica a dica. E viva Iemanjá, rainha do mar.
Confira o trailer do filme, Sou o Povo, Sou a Festa