O borbulhar literário da Fliporto
A Fliporto não cabe em uma lauda, nem duas, principalmente para quem adora as boas festas. Onde há uma integração verdadeira entre o evento e o público e promove-se o encontro entre natureza, pessoas, e, neste caso, LIVROS. A Praça do Carmo, em Olinda, o seu laguinho e parque, não haviam sido tão explorados antes, a não ser no carnaval. Bebês, crianças, jovens, adultos, uma terceira idade linda, cadeirantes, intelectuais, poetas, turistas, todos se divertindo.
Entrei e dei de cara com livros infantis pendurados em árvores, ao lado várias tendas com atividades literárias para a criançada. Digo que um evento é bom quando muito fotografado pelo público. Vi várias cenas, inúmeros usando como pano de fundo a imagem lírica da menina lendo, produzida pela Fliporto. Magali, mesmo tendo apenas o ensino fundamental, foi conferir com o seu namoradinho. Achei tudo tão lindo.
Na sexta (12/Nov), a judia Eva Schoss contou sua vivência com Anne Frank e os terrores da perseguição nazista na Polônia. Geneton Moraes questionou se eles, os judeus, foram avisados sobre o genocídio quando entraram no campo de concentração, ao qual Eva respondeu: “Ninguém tentou esconder, ao contrário, diziam com todo prazer”. Saí um pouco perturbada, mas ao caminhar em direção ao cafezinho, ouvi: “Não mexa muito no peixe, qualquer tipo de carne solta água ao mexer”. Descontraí com a surpresa, a Fliporto também promove palestras gastronômicas. Adorei a dica inusitada.
No sábado (13/Nov), a ítalo-americana Camille Paglia soltou o verbo com gosto de gás. Criticou os EUA no modo de se relacionar/ interagir com o mundo, com as pessoas e com a própria saúde. Sem pudor nem trégua, Camille cuspiu sua verdade nua e crua, bem ao seu modo. Saiba mais na resenha de Bárbara Buril.
A conversa mais interessante do dia foi mediada por Maurício Melo, com o tema: “As nossas ficções de cada dia”. Ela, em partes, se encaixaria na palestra de Alberto Dines sobre “diálogos dos visionários” – até lendo ele consegue ser bom. Mais um ponto positivo da festa foi o acesso facilitado aos questionamentos. É tão bom quando existe diálogo, quando temos o direito de resposta e não precisamos dizer: – Nós estamos aqui, no mesmo lado, podemos interagir. Me senti no antigo Programa Livre.
O debate rolava solto entre o escritor e psicanalista Contardo Calligaris, o jovem escritor português João Tordo e Ronaldo Wrobel, quando surge uma inquietação do público: “Não podemos fugir da autobiografia na ficção? Vocês podem falar um pouco sobre literatura de Ficção-Científica?”. A turma tarimbada enfocava, apenas, o aspecto confessional, autobiográfico do gênero. Como se toda ficção partisse de vivências próprias ou da vida dos outros. Eles não conhecem o meu amigo Felipe e as suas mentiras perfeitas, com toda licença poética. A pergunta foi passada ao jovem João Tordo, que disse ser possível fugir da autobiografia e humildemente, coisa rara no meio, pediu desculpas por desconhecer os que conseguiram entender o humano a partir do inumano, como Phillip K. Dick com o seu “Caçador de Andróides”, belíssima Ficção- Científica. Depois, surgiu a colocação sarcástica do mediador, referindo-se ao caráter futurista da pergunta: “É como se a pessoa estivesse no sertão escrevendo sobre marte”. Impossível? O resto da mesa calou e, enfim, Maurício citou rapidamente as circunstâncias em que foi produzido o livro “Da terra à Lua”, obra singular de Júlio Verne, rotulada no gênero em questão, ficção.
Na segunda (15/Nov), Alceu Valença levou o público ao delírio, com certeza o mais aplaudido, não é à toa a existência/possibilidade de sonoridade neste mundo. Ele realmente sabe fazer as letras ganharem som, há muita “poesia no coração da música” de Alceu. Recitou e declamou divinamente, com todo deboche performático de menino abusado que diz: “Tô na minha área”. Para fechar com chave de ouro, Alberto Dines me apresentou os humanistas Ambrósio Brandão e Stefan Zweig, com certeza comprarei a biografia de Zweig escrita pelo observador, intitulada: “Morte no paraíso”.
A cordelista Rivani Nasario, participante da Fliporto desde a primeira edição, contou: “Esse foi o melhor ano, essa mudança de Porto de Galinhas para Olinda foi maravilhosa. Vendi muitos cordéis, me apresentei três vezes custeada pela Secretaria de Cultura de Olinda. A festa tá muito boa”. No seu tabuleiro, fitei subitamente o cordel: “Mulheres! Do preconceito à justiça”, no qual a poetisa olindense vestida à lá Maria Bonita, diz: “Mulheres inspiradoras/Poetisas geniais/Palavras encantadoras/Todas bem especiais/Liberdade e expressão/ Em cada poesia que faz”.
Realmente, a Fliporto é “plural e inclusiva”. Mas devemos fazer sempre mais pela literatura, que a elite poderosa tenha mais gestos nobres – a redundância é apelo; só assim conseguiremos evoluir mais educacionalmente. Seria perfeito também se os organizadores da Festa Literária Internacional de Pernambuco intervissem para o tombamento do antigo casario rosa da homenageada no evento, Clarice Lispector. Utopista, eu? Sonhos são pontes.
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