Missa do Vaqueiro: ode à força dos nossos antepassados
Tradição tem a ver com memórias, é algo que não desvanece, permanece arraigado na alma através do sangue, corre bruta nas sementes do porvir. Os traços são reconhecíveis, a voz rouca no jeito, a segurança no andar, olhar esgueirado meio tímido meio enxerido, as mãos cheias de calos. Está na cara e no dom, é destinado e bem recebido.
Voltei ao Recife, depois de três dias de acampamento na Missa do Vaqueiro, e tudo parece um acordar de um sonho muito bom. Sinto-me mais forte, mais completa, mais eu mesma. Nesta edição, completei 10 anos de acampamento, comecei em 2003. Tenho mil histórias irreverentes para contar... de namoros com vaqueiros, de fritos em alforjes, apostas, pedidos realizados com beijos em chão pedregoso...
A festividade completou, no último fim de semana do mês de julho, 49 anos, sendo 30 deles sem a presença física de Luiz Gonzaga e Padre João Câncio, fundadores do evento. Na verdade, eles deram alma a um lugar inóspito (seco, empoeirado, pedregoso) onde os vaqueiros enfrentam a seca por uma eternidade. Eu imagino a quantidade de energia posta na formação deste santuário, em um lugar tão longínquo, praticamente invisível aos olhos do Estado.
Para onde se olha, tem um cavalo, um vaqueiro de verdade, os grupos de cavalgadas chegam aos montes e Vicente Jacó, filho do homenageado, vem de Araripina, onde reside, para perpetuar a cultura do seu pai. A representatividade feminina cresceu consideravelmente nos últimos anos, tanto nos grupos de cavalgadas quanto no esporte vaquejada. A gente se sente importante sem soberba, sabe? Sem ego, só com a força de presença, e é lindo ver a inteireza interiorana peculiarmente nossa em cada rosto.
A atmosfera do lugar é de força e coragem, de alegria, mesmo com todas as dificuldades ocasionadas pela indústria da seca, somos felizes e louvamos a nossa ancestralidade. Eu passo horas vendo as corridas de vaquejada, converso bastante com o meu povo e danço muito muito forró - com quem me chamar, se é feio ou bonito, velho ou novo, se sabe ou não dançar, não importa.
A Missa do Vaqueiro é uma festa para se levar as crianças também, ir em caravana como eu vou com a minha família, com grupos de amigos. Este ano tive a alegria de acampar ao lado de Daniel Gonzaga, filho de Gonzaguinha e neto do nosso Rei. Vê-lo se apropriar das suas raízes e ser feliz junto com o seu povo foi impagável. Ah, e sabe aquela viagem, aquela festa, que você diz: - Foi válido cada centavo gasto?! A estrada é bem sinalizada e o evento oferece camping, banheiros, atendimento médico, segurança, alimentação e bebidas.
O Secretário de Turismo de PE, Rodrigo Novaes, esteve presente e confirmou o apoio do Estado. A Fundação Padre João Câncio, na pessoa de Helena Câncio, parece realmente se esforçar para manter o resgate e conservação da cultura do vaqueiro. Inclusive ao encabeçar o projeto Tengo Lengo Tengo, com a realização da primeira Missa do Vaqueiro na capital pernambucana e uma exposição no Museu Cais do Sertão, no Recife. A exposição segue em cartaz até o dia 27 de agosto, quando se comemora o Dia Nacional do Vaqueiro, tem visitação gratuita e contará com uma festa comandada pelo Som da Rural.
Ao ver a farra na Casa dos Vaqueiros, alojamento que recebe vaqueiros e vaqueiras de várias regiões, me dei conta que a festa é tipo o carnaval deles. Sabe aquele momento da música de Gonzaga em que depois de muita labuta vivemos o: “e deixa a tanga voar”? Ainda soa nos meus ouvidos os berrantes e as sanfonas, a gaiatice típica dos sertanejos, com as suas interjeições de satisfação, eles gritam “Ihiiiii”, “Ihiiiii”, “Ihiiiii”. Ai, ai, saudade do tamanho da poeira do Sertão.