Cinema São Luiz abre os olhos
Os cinéfilos que moram, estudam, trabalham, ou apenas curtem andar pelo centro da cidade voltam a se alegrar com a reabertura do Cinema São Luiz. Ele já participou indiretamente, e também diretamente, da vida de muitos. Quantos encontros de namoradinhos, quantas lições aprendidas com as projeções, passeios familiares, passa tempo depois do trabalho? Perde-se a conta. A alta sociedade inclusive frequentava-o assiduamente nos velhos tempos. O cinema foi fundado em 1952, com uma beleza arquitetônica, e vitrais, afrescos, dignos da nobreza, realmente. Tombado pelo Governo do Estado, e alugado pelo mesmo, a novidade é que o cinema terá cine-escola para os alunos de escolhas públicas, bravo!A reforma custou R$ 1,2 milhão, as cadeiras foram trocadas, a rede elétrica e hidráulica, o carpete mudado, novo sistema de som, novos projetores – espero que o público zele.
Foi muito bom, depois de tanto tempo, voltar ao Cine São Luiz e ver a sala lotada, 900 pessoas. Cansa assistir filmes dentro de caixas com pessoas apáticas. Basta o quadrado de casa, do computador, das portas, janelas, as metrópoles são quadradas demais. O São Luiz e o Cinema do Parque são verdadeiros termômetros da recepção do público. Crianças acompanhadas dos pais comentam o filme, adolescentes, senhores e senhoras, e os eternos casais de namoradinhos, de beijos estralados. Parece que pelo menos uma palavra alta sai da boca de cada um. Nada que chegue a incomodar, os lanterninhas estão sempre de olho, e não ponho a culpa do trabalho deles no preço popular dos ingressos. Talvez a obra de arte que cerca a telona nos instigue, desperte, e acompanhado de outra bela arte, a cinematográfica, pronto, liberamos total.
Além de tudo, o cinema é situado num dos melhores ‘clima astral’ da cidade, em frente ao Rio Capibaribe, tão aclamados pelos poetas, como fez João Cabral de Melo Neto na crítica “O cão sem plumas”*, e músicos, como Quinteto Violado: “Indo em passeatas à cidade/Pelas ruas onde o povo feito menino/ Corre sem destino/ O rio Capibaribe feito cobra grande”. Como o Cinema da Fundação, o Cine São Luiz foi muito frequentado pela intelectualidade pernambucana, hoje cruzam a roleta gente de todos os tipos, que seja sempre assim! O governo enfim percebeu o valor da sétima arte para a população, o Cine Chinelo no Pé, por exemplo, conseguiu patrocínio ano passado – depois de anos – para exibições de filmes ao ar livre, gratuitamente, que não entram na programação dos cinemas. Agora o Cine São Luiz aposta na exibição da produção nacional e local, dando maior visibilidade aos cineastas nacionais. Viva o Cinema São Luiz, que ele possa fazer parte da vida dos meus filhos como fez e ainda faz da minha.
I. Paisagem do Capibaribe*
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
Em silêncio se dá:
em capas de terra negra,
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.
(É nelas,
mas de costas para o rio,
que "as grandes famílias espirituais" da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).
Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
Em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
* Trecho de "O Cão sem plumas", de João Cabral.