Carícias onde não há carícia! - Carícias (Foto: Hans von Manteuffel)
Carícias (Foto: Hans von Manteuffel)

Carícias onde não há carícia!

Matéria • 6 de maio de 2010 • Belisa Parente

Carícias são afagos físicos, mas também existem carícias distantes. Uma carta, um olhar maternal ou desconhecido, uma lembrança trazida de um lugar peculiar, um “bom dia” despretensioso, são tipos de carícias. Esporadicamente encontrava um rapaz em bares e festas, ele sempre estava sozinho, por isso sua presença me capturou. Nunca gostei de sair sem amigos, faltava coragem, na verdade – admirava o rapaz que saia sem bando. Quando se é mulher e senta-se em uma mesa de bar sozinha os homens nos veem como pedaços de carne, o humano que existe em nós é sublimado.

Resolvi fazer uma carícia no rapaz solitário, o convidei para juntar-se a mim e minha amiga. A resposta dele, como uma bala disparada precipitadamente, foi: NÃO! Essas três simples letrinhas saltaram de subido, impedindo, assim, nossa comunicação. Ele poderia ter dito: Obrigado, estou bem sozinho. Ou: Obrigado, melhor só do que mal acompanhado. Mas a resposta dele foi apenas: ‘Não!’ Como um ‘Porra!’ usado como interjeição. É sobre essa dificuldade de comunicação verdadeira que versa a peça dirigida por Leo Falcão, inspirada no texto do catalão Sergi Belbel.

Carícias é uma peça fria – como o rapaz solitário -, provavelmente para ilustrar a situação do homem contemporâneo individualizado e os jogos de interesses que permeiam as relações. O uso da metalinguagem permite o desdobramento de cenas que podem, ou não, se interligar. Possivelmente irás se enxergar em uma das 11 cenas. A separação adiada entre mulher e marido. O drama da mãe que se sente sozinha e cobra a atenção da filha. A irmã, arrependida, procura o irmão para ficar com a consciência tranquila… As relações familiares são destacadas no espetáculo, muitas vezes como simples relações cordiais desprovidas de amor verdadeiro – ou há desejo ou interesse, como em um jogo.

A peça, que fica em cartaz até dois de maio, no teatro do SESC de Santo Amaro, tinha a maior parte do público composto por lindas senhorinhas, que se abanavam incessantemente mesmo com ar condicionado forte. E a reação das mesmas durante a apresentação chamou a minha atenção. Na cena em que a filha manda a mãe procurar um asilo para evitar a solidão elas gritaram: “É só vir pro SESC”. Quando a esposa, depois de ser agredida pelo marido, faz de conta que nada aconteceu e segue com o mesmo, elas falaram: “Vai apanhar dinovo”. Quando pai e filho entram nus na banheira vitoriana (foto acima), demonstrando um relacionamento sexual, elas taparam os olhos. O mesmo não acontece na cena em que duas senhoras se beijam no asilo, as senhorinhas sorriem entre dentes. E quando o jovem conta suas aventuras lisérgicas elas ficam atônitas – possivelmente desconheciam as vivências de um jovem que curte freneticamente os seus vinte poucos anos. O jovem citado é interpretado por Rodrigo García, para mim, o destaque da peça. O pernambucano, com Bacharelado em Acting – Liverpool Institute for Performing Arts, na Inglaterra, foi o único que precisou fazer o teste de elenco. E arrasou. Um detalhe, nenhum personagem da peça possui nome próprio, caracterizando mais uma vez o impessoalismo da contemporaneidade.

A peça captura explosões do comportamento humano com certo tom de loucura. A liberdade e a verdade estão intimamente ligadas, como se o autor/diretor dissesse: Somos verdadeiros quando livres somos. E em determinado momento do espetáculo surge a frase: “Toda imaginação é conhecimento”. De acordo com o diretor, a peça é uma oportunidade de tratar a imagem de forma mais imediata, moldando-a a uma narrativa literalmente viva.

Parece que justamente por guardar pressupostos de presença, convidando ao sonho de maneira urgente, o teatro é capaz de nos levar a outras realidades, tão subjetivas quanto a nossa mente exige (…) experimento materializar a imaginação em favor da imagem”, destaca Leo Falcão.

O pesquisador Juremir Machado, analisando as “tecnologias do imaginário”, afirma: “O imaginário é um rede etérea e movediça de valores e de sensações compartilhadas concreta ou virtualmente”.

O texto de Sergi Belbel é realmente muito contemporâneo, e foi interpretado por inúmeros grupos de teatro no Brasil e no mundo. Remete-me a ideia: “Nenhum homem é uma ilha”. Somos seres holísticos, precisamos nos sentir parte do todo, necessitamos de carinho sem condicionamentos. Uma reclamação frequente entre as mulheres, por exemplo, é sobre a falta de carícias por parte dos homens antes e durante o coito: “Eles só se preocupam com o próprio prazer”, afirmam. Muitas passaram a procurar o relacionamento amoroso com outras mulheres justamente por isso – o individualismo invade o jogo e estraga as relações.

Depois do NÃO! cuspido pelo rapaz solitário me resguardei. Deixei de acariciar os desconhecidos despretensiosamente, de tentar iniciar uma conversação, entende-los além da imagem e da imaginação – talvez o pequeno solitário fosse apenas um voyeurs, sem as mesmas pretensões que as minhas. Mas depois de assistir a peça, percebi quão necessário são as carícias onde elas não existem. Os dados serão novamente jogados…

Elenco: Ana Claudia Wanguestel, Carlos Lira, Cira Ramos, Marcelino Dias, Paula de Renor e Rodrigo Garcia
Tradução: Chistiane Jathay
Assistente de direção: Karina Falcão
Produção de figurino: Chris Garrido
Assessoria de imprensa: Flora Noberto
Realização: Remo Produções Artísticas e Centro de Diversidade Teatro Armazém

Serviço
“Carícias”, direção de Leo Falcão para texto de Sergi Belbel (Censura 14 anos)
Apresentações: Sábados e domingos, às 20h (Temporada até 02 de maio)
Local: Teatro Marco Camarotti – SESC Santo Amaro – Rua do Pombal, s/nº (em frente a delegacia)
Ingressos: R$ 15,00 (inteira) e R$ 7,50 (meia-entrada)
Informações: (81) 3216-1713 / 3216-1714 / 3216-1721