A centenária força vital de Nelson Rodrigues - Nelson Rodrigues (Foto: Divulgação)
Nelson Rodrigues (Foto: Divulgação)

A centenária força vital de Nelson Rodrigues

Matéria • 23 de agosto de 2012 • Belisa Parente

Quis escrever sobre o escritor Nelson Rodrigues, mas li textos maravilhosos de colegas que fizeram questão de registrar as inúmeras nuancem do pernambucano mais carioca que eu conheço. Afoita, me senti impelida a criar uma crônica à sua altura, mas preferi publicar um trecho de um conto para matar a nossa sede. O cara é realmente fodástico,  completo, e essa história de comemoração vale para nos fazer lembrar, conhecer, aprofundar. Uma amiga me ofereceu emprestada a biografia escrita por Ruy Castro, agora vou ler, antes, só através de pesquisas solitárias na internet – no Google Acadêmico existem vários livros do autor -, revistas e conversas em mesas de bar.

Pensei alto, sintomaticamente, sopra a tua genialidade aqui, a força da tua máquina, obstinada, noite e dia sem fim. O poder criativo, o fôlego, a força vital de Nelson conseguiu suplantar a exaustão, mortes, desdéns, as dívidas, os inimigos. Com 14 anos de idade Nelson Rodrigues lançou, no Recife e no Rio – 250 exemplares para cada cidade-, um tabloide colérico, escrito quase todo por ele, chamado “Alma Infantil”. Muitos anos depois, questionado, numa entrevista, sobre o que notava nas mulheres à primeira vista, respondeu: “A alma”.

Trecho do conto A Romântica:

No décimo quinto dia do casamento, Dinaura estranhou:
– O que é que há contigo?
Sobressalto do marido:
– Comigo? Nada, por quê?
E ela, num suspiro:
– Está com uma cara!
Muito sensível e perspicaz, Dinaura vinha notando o seguinte: que, a partir do quarto ou quinto dia de lua-de-mel, Joãzinho deixara de ser o esposo maravilhado e sôfrego. Por exemplo: seus beijos iniciais eram de uma exemplar voracidade e quase a sufocavam. Por vezes, queria protestar “Que é isso, meu filho? Calma no Brasil”. Ele, numa auto-satisfação profunda, feliz por esse temperamento, fazia cabotinismo:
– Você ainda não viu nada!
– Credo!
E, de repente, Dianaura começou a sentir pequenas mudanças e uma série de sintomas desagradáveis. Os beijos não tinham a mesma intensidade, nem a mesma duração. Ele passou a bocejar muito, na sua frente, sem o menor escrúpulo. Dianaura deixou passar uma, duas, três vezes. Por fim, não se conteve:
– Ih, meu filho!
– O quê?
– Tão feio isso que você faz!
Espanto honesto de Joãozinho:
– Mas eu não fiz nada!
– Fez sim, bocejou na minha frente!
– Ué!
Ela sentida, desencantada, insistiu:
– Considero isso uma falta de poesia tão grande!

(Elas gostam de apanhar, de Nelson Rodrigues, Bloch Editores, Rio, 1974).

(Trecho da minissérie “Engraçadinha”, inspirada no romance “Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados”, escrita em 1959 por Nelson Rodrigues e adaptada para a TV por Leopoldo Serran, em 1995. A partir desta quinta (23) o canal Viva irá retransmitir a minissérie às 23h15).