Amelie pousa na cálida Anoirguerr -

Amelie pousa na cálida Anoirguerr

Coluna • 10 de novembro de 2010 • Belisa Parente

Ao sobrevoar arregalou os olhos, havia Jesus Cristo nos planetas baixos, descobriu. Mares calmos e bravios, uma natureza deslumbrante. Entretanto, sabia… Viagem de graça é castigo imposto, no fundo para o bem. É preciso mesmo ser macaco para adentrar na selva, conhecer os morros e rios, ela ouviu. Interação desafiante. Tentava entender o seu destino dentro deste plano.

Resolveu caminhar na rua, amedrontada e segura de si, ela não era boba, precisava saber se defender. Encontrou uma padaria e resolveu provar o café. Ligou o seu pclógio – parecia uma nave espacial, e sintonizou a HDTV local. Havia uma jacarelista engraçada, com colete à prova de balas, mostrando animais correndo no calçadão, felizes, a paz reina em Anoirguerr, dizia. Amelie sabia a verdade, existia uma disputa entre os poderes comandantes, queria ser uma mosca para ouvir o diálogo entre eles. De um lado uma matilha de buldogue, do outro, milícias de vira latas – por sinal, mais desenrolados e belicamente mais pesados. Lembravam até os vietcongues pela mandinga, ou melhor, malandragem – necessária, afinal, é preciso viver. Conheciam e comandavam o terreno muito bem, mesmo sendo o poder não oficial.

Ao se aproximar do vulcão que enveredava o rio, Amelie conheceu matriarcas desesperadas, temendo a vida dos filhos em meio ao caos suburbano. A mãe de Leninha disse que ela sabia que não eram fogos de artifício, nem macaquinhas estourando bolas de assopro catadas na frente de um prédio classe A, antes fosse. Leninha olhou rapidamente de um lado ao outro e disse: “Corre João, corre!”, suas últimas palavras. Talvez ela tenha subido com bolas coloridas. Nos cadernos de Leninha, jogados no chão, corações vermelhos desenhados e um lembrete em letras garrafais: “Dia 20, Lesmatista. Dentes entramelados nunca mais. Uebaa!” Toninho, seu irmão mais velho, havia conseguido grana para pagar o tratamento. Grana fácil, ela havia comentado com a mãe, não era besta, mas o ato pareceu mudar a vida da macacamenina.

João não quer mais ir à escola. Não quer comer, sair para brincar na rua, nem aquele big sorvete o atrai. Dona Zuleide não pode pagar um doidológico para conversar com o pequeno que viu a irmã subindo ensanguentada. João está em choque. Além de Leninha, mais três macacos foram mortos por “balas perdidas” dos buldogues que faziam uma ação contra traficantes no morro – e dos vira latas que respondiam aos disparos. Três trabalhadores assassinados e considerados criminosos, sempre as mesmas desculpas. O filho de um deles não cansa de chamar pelo pai. Sua avó conta uma história bonita, como a da jacarepórter engraçada. Diz que papai foi pra um planeta superior, com santos e anjos, em paz. Mais tarde ele descobrirá quem matou o pai. Talvez se torne um viraficante daqueles que amam matar buldogues, afinal, ele já não tem quem coloque o pão na mesa, não tem bom estudo, nem perspectivas de um futuro promissor.

Tiros, bombas, homens descendo e subindo. Mortes. Medo. Mudança? O coração inóspito de Amelie se viu esperançoso, apesar de tudo. Leninha está sendo enterrada. João ficou em casa deitado no chão ao lado da margarida arrancada da coroa. As macacasmigas choram, a comunidade faz uma homenagem linda, cantam. E lá no meio, um cartaz de cartolina, com uma frase em batom bordô: “Queremos vingança”. Amelie filmou tudo e partiu rumo ao plano superior com um ditado popular brasileiro na ponta da língua: “Aqui se faz, aqui se paga”.