Furacão de criatividade pós Katrina
Em 2005, precisamente no mês de agosto, a destruição foi geral. O furacão Katrina causou prejuízos financeiros e humanos imensos para a região do litoral sul dos Estados Unidos, especialmente para a cidade de Nova Orleans, localizada no estado da Louisiana. Cinco anos depois, a cidade do jazz vive um clima totalmente diferente. Graças à arte, à criatividade dos seus moradores e, principalmente, ao Bairro Francês, que não foi atingido pelo Katrina e abriga os principais pontos turísticos da cidade, Nova Orleans se recupera com sucesso e resgata as cores intensas de anos atrás.
Por ser fruto da colonização de três países: França, Espanha e Inglaterra, sucessivamente, a cidade apresenta uma riqueza cultural indescritível. Os elementos culturais da França, na região, recebem o nome de “cajun”, devido a proveniência dos colonizadores franceses, que migraram da colônia francesa de Acádia, no Canadá, para a Louisiana. A palavra “Acádia” transformou-se em “cajun”. Já a herança cultural dos imigrantes americanos das colônias francesas do Haiti e Martinica, fundida aos elementos indígenas, recebe o nome de “créole”. Além disso, por ter sido Nova Orleans um grande centro portuário, a cidade se tornou o ponto principal de comercialização de negros africanos e a maior comunidade afro-americana dos Estados Unidos. Assim, a presença da cultura afro influenciou significativamente as manifestações religiosas – com a incorporação do vodu e do misticismo – e a culinária, caracterizada pelo uso da pimenta, da linguiça e das ostras. O punhado cultural francês, o tempero espanhol, a discreta presença inglesa e a total essência afro-americana fomentaram o jazz, o principal prato de Nova Orleans, devorado hoje pelos turistas e preparado com toda a criatividade possível pelos músicos da região, aparentemente inabalados pelos efeitos do furacão Katrina.
A cidade ainda se mostra fragilizada, embora o brilho já tenha sido resgatado. Veem-se várias casas à venda e algumas pessoas ainda resistem em falar sobre o acontecimento, principalmente as que estavam na cidade na época do desastre. Bob Smith, balconista do pub Johnny White’s, quando questionado sobre a sua fama de ter ajudado várias pessoas na época, diz, timidamente: “É. Toda quinta ou sexta à noite muita gente vinha aqui. Era o único bar aberto na Rua Bourbon, oferecíamos comida e calor. A cidade estava alagada e eu ia buscar comida para abastecer as pessoas que estavam aqui”. Para ele o Katrina é um tema delicado. Em contrapartida, Marianna, 22 anos, ajudante de cozinha do Café Beignet, um ponto turístico da cidade, não vivia em Nova Orleans na época, mas mostrou-se aberta a falar sobre o fato: “Eu não vivia aqui, mas sei muitas histórias. Tenho uma amiga que encontrou a banheira de sua casa a dois quarteirões de distância de onde vivia! Também fiquei muito triste quando eu soube que a maior coleção de fotografias religiosas do mundo foi destruída pelo furacão”.
São diversas as reações das pessoas quando questionadas sobre o fato, mas, no geral, o bom humor impera, afinal, a cidade é formada massivamente por artistas e, para artistas, o que não é motivo de inspiração? Nas galerias da Rua Royal, o que mais se vê são pinturas que remetem aos efeitos do Katrina na cidade. Terrance Osbourne, por exemplo, produziu uma série de quadros chamados de “Hurricane Solution” (fotos abaixo), em português “A Solução para o Furacão”, os quais mostram casas em botes, casarões sustentados por madeiras, tais quais palafitas, e construções no topo de árvores. É importante ressaltar as cores fortes e o traço infantil da pintura, sinal do bom humor e do positivismo com o tema abordado. Além de Terrance, outros pintores dedicam sua arte ao enaltecimento da cidade, como Natalie Boos, que tem como foco primário os casarões típicos de Nova Orleans, e Vigo Boom, pintor dos rostos e tipos encontrados nas ruas irregulares da cidade do jazz.
Não só nas artes plásticas se encontra a recuperação. Em cada esquina, veem-se grupos de músicos executando diferentes formas existentes do jazz, com muita alegria e animação. A música pulsa, na cidade, em todas as suas variáveis. No entanto, o jazz tradicional tocado com instrumentos metálicos tais quais o sax, o trompete e a tumba não são visto nas ruas, mas, sim, em alguns bares mais conservadores, como o Maison Bourbon, localizado na Rua Bourbon. Nas ruas, a música é diferente, mais dançante e profana, menos grave. John Joyce, 40 anos, violoncelista da banda Shoe Shine, que se apresenta na rua Royal durante as tardes, responde, quando perguntado sobre as diferenças entre o jazz tradicional e o jazz de rua: “A nossa música também é jazz. Quando o jazz foi pra Chicago, muita coisa mudou, mas a tradição está aqui também. Nós tocamos com sax, trompete, violoncelo, o que é tradicional, mas não temos a tuba. Tocamos na rua, podemos criar, colocar coisas e tirar. Em cada canto aqui você vai encontrar uma coisa diferente, mas tudo vem da mesma raiz, tudo é jazz”. A riqueza do estilo musical leva efervescência turística para a cidade e, principalmente, recuperação.
É bonito observar, também, que os músicos de rua da cidade não possuem a obrigação de fidelidade a uma banda ou a um único instrumento. O que parece ser importante para eles é o sustento próprio e a música em si. Eles existem para levar arte para a cidade e, se querem trabalhar, podem fazer individualmente, no começo ou no final da Rua Royal, ou em grupo, tocando violão, ou até serrote. O espírito de liberdade dos músicos existe e, incontestavelmente, contagia a cidade. Chadmo, trompetista da banda Shoe Shine, comenta: “Conheci alguns dos meninos da Shoe Shine em um circo que passava pela França. Alguns eu conheci aqui mesmo”. Chadmo diz gostar muito do Recife, para onde já foi como grafiteiro. A multiculturalidade das pessoas de Nova Orleans remonta aos tempos coloniais, quando franceses, espanhóis, ingleses, africanos e americanos viviam com costumes diferentes em um mesmo espaço, a trocar experiências e a aperfeiçoar culturas individuais.
Assim, mesmo após o desastre provocado pelo Katrina, os turistas ainda vão para Nova Orleans procurar a diversidade encontrada na cidade. A Rua Royal e as suas galerias e antiquários, a Rua Bourbon e os seus pubs embalados pelo jazz, a Rua Frenchmen, um misto de Royal e Bourbon, os museus, o Mardi Gras, carnaval da cidade, a culinária apimentada, o espírito de liberdade, um espaço de maior liberalização no território estadunidense, as construções, os cafés… A essência da cidade o Katrina não conseguiu destruir e, por isso, Paulo Monteiro, 31 anos, brasileiro e hoje morador da cidade de Atlanta, no estado estadunidense da Geórgia, quando questionado sobre o que o leva a visitar Nova Orleans, mesmo após o Katrina, diz: “Todo mundo me falava que a cidade se parecia com o Brasil, devido à liberalização das pessoas. Nos Estados Unidos, as coisas são bem rígidas. Não se pode beber na rua, por exemplo. Amo a Rua Bourbon, os bares um ao lado do outro, o carnaval da cidade, as festas”.
A sensação que se tem, no entanto, quando se vai à Nova Orleans, é que a cidade ressurgiu dos escombros mais pela determinação de sua gente que propriamente pela ajuda do governo norte-americano. Após o Katrina, muitos políticos defenderam o esquecimento de Nova Orleans, devido às condições adversas em que se encontra a cidade: abaixo do nível do mar, espremida entre o Rio Mississipi e o Lago Pontchartraim. A ajuda do governo Bush foi lenta, graças à super-burocracia criada após o 11 de setembro, e limitada, devido talvez ao preconceito de classe, já que somente os pobre ficaram na cidade durante o furacão. Sean, 18 anos, Guest Service de um dos hotéis do Bairro Francês, diz que a cidade está crescendo com esforço próprio. Quando perguntado sobre o que ajudou ou tem ajudado na reconstrução, responde rapidamente: “O Bairro Francês, sem dúvida”. E é, realmente, o brilho do Bairro Francês que oferece as maiores rendas à cidade.
Cinco anos após o furacão o turismo cresce, os artistas voltam a criar e a cidade resgata o seu espírito peculiar: frenético, por ser jazzístico. Enxergar, em Nova Orleans, a capacidade potencialmente transformadora da arte é um presente para a mente e uma arma para as mãos do homem. Aprender que a expressão artística também é sobrevivência, e a garra artística é a proteção necessária para qualquer furacão.
Confira abaixo as fotos de Nova Orleans